Casa-Grande & Senzala é uma obra marcada por dualismos, por contradições, assim como a sociedade brasileira: revolucionária e conservadora.

Gilberto Freyre
Nas décadas de 1920-40, os intelectuais brasileiros estavam às voltas com o tema da identidade nacional e da recriação institucional. Era uma época de agitação cultural e política, na qual se buscava reinventar a nação e forjar um povo para o moderno Estado que se visava edificar.
As ferramentas utilizadas para o projeto eram as das modernas ciências sociais, recém incorporadas, e a experimentação, um legado das vanguardas artísticas e políticas da Europa. O pensamento de segunda categoria, herdado do Império, que havia gerado uma espécie de cultura decorativa, ignorando a realidade brasileira, o horror da escravidão e o atraso econômico e social, havia ficado definitivamente para trás naqueles anos.
Casa Grande & Senzala, publicado em 1933, no contexto da Revolução de Trinta, marco do Brasil moderno, urbano e industrial, é obra de um autor ligado ao passado colonial. Nem por isso é um livro antiquado. O tema de fundo – a sociedade patriarcal – recebeu tratamento anticonvencional, expressão do momento de reinvenção da sociedade e da culturas brasileiras, no qual as ferramentas das modernas ciências sociais e o legado das vanguardas artísticas europeias eram incorporadas para a interpretação da realidade. O resultado é a explicação das raízes da cultura e da formação miscigenada das gentes no passado, desde a perspectiva do alpendre da Casa Grande.
Uma obra marcada por contradições
Gilberto Freyre estudou o mundo que o português criou, na lonjura das distâncias, a partir do sentimento de isolamento e de solidão proporcionado pelo trópico e pela organização social e econômica da colônia. A vida sexual do patriarcado, os momentos de aproximação (amaciamento) e de distanciamento em relação ao escravo negro, a alimentação, a formação da mentalidade sob o catolicismo ibérico, nada lhe escapou.
O resultado é uma obra marcada por dualismos, por contradições, assim como a sociedade brasileira: revolucionária e conservadora. Um exemplo é o mito democracia racial, a aproximação dos contrários, fruto do contato sexual entre o senhor branco e a escrava negra. Por um lado, a distância é quebrada e dois humanos se encontram em contato íntimo; por outro, o resultado do contato é sempre um novo escravo que repõe a distância e a dominação.
Darcy Ribeiro, em prefácio escrito para a edição venezuelana da obra, não deixa de atentar que a dualidade está impressa, também, no próprio autor, ele próprio “um moço formado no estrangeiro” ao mesmo tempo que “um senhorio fidalgo evocativo de um mundo seu”.
Casa Grande & Senzala, com o & comercial no título a juntar os dois contrários, evoca a dualidade não resolvida, a marca distintiva da sociabilidade dividida entre dois mundos: o passado e o futuro. Um Brasil que, apesar de ter adentrado a modernidade e assumido as suas formas, não rompeu com a substância do passado que o forjou. Vivas entre nós a empregada doméstica negra ou mestiça em “casa de família”, as favelas povoadas de pobres negros e mestiços e uma democracia sitiada por fantasmas autoritários.
Um clássico sustentado em explicações fracas e preconceitos
Sem temor ao exagero, é possível afirmar que um clássico nunca perde o seu vigor. No Brasil de nossos dias, em que a ignorância da história é perseguida como arma de uma batalha política-ideológica, Casa Grande & Senzala é leitura obrigatória. O problema são as polícias do pensamento, que banem livros e disciplinas dos currículos acadêmicos.
Governantes que buscam estabelecer simetrias entre as leis e as instituições brasileiras e as de outras nações, sem considerar a realidade da formação econômica e social e as mentalidades forjadas pela história, são cumplices de uma nova colonização, mais sutil que a primeira, e da perpetuação da dualidade dos que mandam e dos que obedecem internamente. De fato, não vencemos o passado; não somos república. Gilberto Freyre está mais atual do que nunca!
Ao completar 90 anos, Casa Grande & Senzala não se livra das polêmicas que acumulou. A maior parte delas em função do seu conteúdo estar embasado numa explicação fraca e em preconceitos dos quais o autor, membro da elite nordestina, nunca se livrou. Tal qual paciente diante do psicanalista, Gilberto Freyre se fechou e carregou os seus recalques, contaminando a sua história social da família patriarcal.
Dante Moreira Leite, em “O Caráter Nacional Brasileiro”, lembra que o que Freyre denominava como sociologia genética, para contar uma história explicada pela psicologia, é mais anedótica do que propriamente científica. Narra o comportamento do português, do índio e do negro de forma conservadora, com base nos preconceitos da classe dominante, sem fundamentação empírica. Desta forma, o negro é quase que sujeito passivo da própria condição e da formação social, chegando a viver melhor sob a escravidão do que sob o regime do trabalho livre!
Igualmente, a família patriarcal foi pensada como base no mesmo esquema, como organização psicológica. O que faz com que o seu papel como estrutura de dominação social e econômica seja dissolvido. Mas ela é lugar do patriarca, transformado depois em coronel e, atualmente em chefe político, membro de uma oligarquia.
Nos nossos dias, em que pese a passagem do tempo e a rotinização dos estudos históricos e sociais orientados pelo método científico, os preconceitos presentes na obra de Freyre ganham dimensão no convívio das ruas, nas câmaras do vereadores, nas assembleias legislativas e no Congresso.
Casa Grande & Senzala tem o mérito de ser uma obra que incorpora teses inovadoras, como a teoria culturalista de Franz Boas, e rompe com a noção de que o brasileiro mestiço constitui uma raça inferior. As suas limitações, derivadas das suposições alimentadas por Gilberto Freyre, não diminuem o seu alcance e importância. Hoje, entretanto, ela precisa ser lida como expressão de um contexto, no qual se gestou uma ideologia do Brasil. Esta, justifica a divisão do mundo dos viventes sob forma estamental, o déficit democrático e a privatização do público. É base do autoritarismo em nossa vida social e política.
BIBLIOGRAFIA:
LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 7ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Editora Unesp, 2007.
RIBEIRO, D. Ensaios insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979.
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