A subversão dos princípios republicanos semeia conflitos e ameaça a democracia.

Erving Goffman
As sucessão presidencial é característica da forma de governo em vigor. O mandato eletivo e com prazo determinado opõe a República, escolhida pelo povo em plebiscito, no ano de 1993, à monarquia, cuja chefia é hereditária e por tempo indeterminado.
Em que pese a forma, o Brasil é um arremedo de República. Aqui, não governam as leis, mas os homens; e, não raras vezes, os piores. É o que se pode deduzir ao avaliar retrospectivamente a sociedade política pelas manchetes de jornais dos anos deste período presidencial. Há de tudo um pouco, mas sobressai o desprezo bolsonarista pela Constituição em vigor e, em consequência, pela responsabilidade que deve ter o chefe do governo republicano perante o verdadeiro soberano, que é o povo do Estado.
O caráter particularista e excludente imposto às ações de governo, atentando contra as ideias, os sentimentos e a honra dos cidadãos que não comungam o credo político e ideológico particular dos mandatários faz do Brasil uma espécie de campo de extermínio. Não se encaixar no estereótipo do “cidadão de bem” governista conduz à estigmatização social e, no limite, pode levar à morte. São conhecidos os números trágicos da violência contra as minorias e o saldo crescente de assassinatos no período.
O tratamento pejorativo do presidente, de ministros e de parlamentares da base de apoio aos brasileiros por conta de diferenças de cor de pele, orientação sexual, política e religiosa, entre outras, exprime um antirepublicanismo atroz. Ao desacreditar um cidadão por conta de sua condição ou ideias, essas autoridades o lançam em situação de precariedade na sociedade política, diminuem a sua importância e roubam o seus direitos fundamentais. É como se lhe retirassem a humanidade. O “eu não sou coveiro” ainda ressoa sobre os cadáveres da Covid-19.
O sociólogo canadense Erving Goffman, em seu Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1963), adverte que macular atributos diferenciais da identidade social dos indivíduos produz consequências danosas, cria interdições e lugares proibidos. Ao mesmo tempo, junta os excluídos entre os seus, entre os considerados iguais. Para a integração dos cidadãos na polis isso é o fim: não aponta para a formação de consenso sobre a convivência e faz explodir os conflitos. A universalidade dos cidadãos, fundamental para a existência da República, una e indivisível, fica comprometida.
É do jurista alemão Carl Schmitt, em O conceito do político, a noção segundo a qual a lógica da guerra, dos amigos contra os inimigos, não deixa de permear a política (1992). Na conjuntura atual, porém, na qual cargos civis são ocupados por militares fardados em número sem precedente, a impressão que fica é de que o adversário a ser destruído pelo governismo é local. Daí a exacerbação dos conflitos e a busca por marcar os adversários. Trata-se de selecionar para usar a força coativa do Estado contra os do próprio povo. “Eliminar uns 30 mil”, como queria Bolsonaro, em números de 1999.
Selo de unidade dos cidadãos, a República simboliza o governo da lei com a finalidade de produzir o bem comum. Entre nós, entretanto, a vontade de uns poucos se sobrepõe à Constituição, estimula a anarquia e cria o conflito. O saldo é uma espécie de alegoria do estado de natureza hobbesiano, uma situação em que todos estão contra todos e a violência em toda a parte. Nem mesmo é fácil identificar os amigos nesta guerra, como comprovam as defecções no governismo e o dissenso oposicionista. Logo, a aposta na saída autocrática de corte militar. Um nacional retrocesso.
A tragédia dos brasileiros é assistir à montagem deste enredo e esperar a resposta das urnas. A crise acima aludida não pressagia bons ventos. Esperar um timoneiro enviado pela providência pode ser uma ilusão. Nas sociedade modernas, por fora de uma cidadania ativa e imbuída de uma forte cultura pública, há apenas o barqueiro que conduz para o submundo onde perecem as democracias. Como no poema de Homero, este pode até ser um deus, mas está condenado ao inferno (A Odisséia, 2022).
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