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Foto do escritorRogério Baptistini Mendes

Conjecturas acerca das eleições municipais de 2024

Atualizado: há 6 dias

A compreensão do resultado eleitoral reclama a análise da dinâmica social em perspectiva histórica.

Émile Durkheim

Finalizado o processo eleitoral e divulgados os resultados, os analistas especializados, que povoam os meios de comunicação, informam que a esquerda foi a grande derrotada e que a polarização política enfraqueceu. Por esquerda, leia-se o Partido dos Trabalhadores (PT), do Presidente Lula da Silva; a polarização refere-se à disputa entre o partido do presidente e a extrema-direita aglutinada em torno da figura do ex-presidente Jair Bolsonaro.


Se a interpretação estiver correta, o centro político venceu as eleições municipais e o extremismo de esquerda perdeu, mas não o de direita. Logo, Lula e o PT seriam a expressão do radicalismo político oposto ao bolsonarismo que, de alguma forma, sofreu uma derrota menor, pois a esquerda perdeu e a direita, não.


Os argumentos dos ditos especialistas apoiam-se em número de votos e de prefeituras conquistados pelos diversos partidos, como se houvesse relação direta entre a convicção dos eleitores, a distribuição do poder e, sobretudo, a ideologia dos partidos, num sistema político-partidário que, entre outras perversões, carrega o fisiologismo.


É preciso lembrar que o que está em discussão numa eleição é o governo do povo. E, para os modernos, a supremacia da vontade popular não admite controvérsias. Mas este mesmo povo conforma um tipo particular de sociedade, na qual a liberdade dos membros e a igualdade na fruição dos direitos está assegurada contra a formação de maiorias ocasionais e, também, contra a manipulação de sua vontade. É o que chamamos Estado Democrático de Direito.


O Estado Democrático de Direito, no Brasil, é figura recente, apesar de na história haver instituições que reclamam o seu nome. De fato, ele surge com a Carta Constitucional de 1988 que o consolida como ideal supremo e finaliza o regime de arbítrio iniciado em 1964. Sua sustentação foi uma sociedade civil ativa, mobilizada nas cidades e no campo, nas fábricas e nas universidades, em busca de direitos civis, políticos e sociais. Seu Norte era, e ainda é – está pactuado! -, um capitalismo social, capaz de absorver sempre mais cidadãos e lhes garantir um lugar e uma função no corpo social.


O problema brasileiro é que a Democracia e o Estado da Carta de 1988 parecem estar fora do lugar. Os interesses ligados ao antigo regime não foram desalojados e continuaram a ditar a rumo dos acontecimentos, demonstrando a força do estamento que, como cancro roedor, suga a energia viva da sociedade[1].  

Por outro lado, o abandono do bem comum, ditado pelo desmantelamento do Estado de bem-estar social, é um fato da nova dinâmica da acumulação capitalista.

“Obrigado a financiar seu endividamento através de empréstimos em bancos privados, o Estado perdeu parte essencial de sua soberania. Esse mecanismo [...], permitiu que a indústria financeira assumisse o controle não só da economia, mas também do mundo político.” (GUILLUY, 2020. P. 86.)


A sobreposição de tempos -o nosso passado e o presente das nações centrais- inviabiliza o nosso destino comum e complica o governo do povo. Afinal, antes mesmo de se consolidar, o nosso capitalismo social transmuta-se no seu contrário, criando uma arquitetura institucional excludente, geradora de grupos inteiros de pessoas que não se integram pela via do trabalho formal, o que leva a uma forma precária de solidariedade social e aponta para a anomia (DURKHEIM, 2008).


Antes de peremptoriamente afirmar algo sobre o enfraquecimento da esquerda, o fortalecimento do centro e o fim da polarização política, seja lá o que isso queira dizer, é importante tentar compreender o que acontece com a sociedade política e com os seus membros. Estes, em última instância, não manifestam ligações orgânicas com os partidos que, tampouco, se orientam por princípios. Na verdade, se fossemos utilizar a primitiva classificação de David Hume, as siglas servem de suporte para os vínculos de afeição[2]. Assim é que personalidades se tornam objeto de culto e fazem reviver o fenômeno do populismo, com todas as suas implicações.


Na nova realidade digital do capitalismo financeiro e cada vez mais desregrado, compreender como a repressão psíquica se transforma, contraditoriamente, num mecanismo de prazer e na base de um comportamento social e político manipulado por influenciadores, líderes religiosos e políticos parece ser a chave explicativa do resultado eleitoral.


Esta é a sociedade dos inimpregáveis, dos supranumemários, de uma classe média que luta contra o desaparecimento. E todos olham para o passado imaginando encontrar segurança.


NOTAS:

[1] “Muda uma categoria, que, por meios autoritariamente coercitivos, a transmite às outras faixas da população, num processo modernizador, marginalizador, bovarista. [...] O sistema compatibiliza-se, ao imobilizar as classe, os partidos e as elites, aos grupos de pressão, com a tendência a oficializá-los.” (FAORO, 1989. p. 745.)


[2] Davi Hume, em Ensaios Morais, Políticos e Literários (1758), divide as facções políticas (partidos) do seu tempo entre as de princípio, interesse e de afeição. Segundo ele, as de interesse são razoáveis, as de princípio, não. E as de afeição se justificam pelas diferentes ligações dos homens com as pessoas que desejam que os governem.  


REFERENCIAS:

GUILLUY, Christophe. O fim da classe média; a fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2020.


FAORO, Raymundo. Os donos do poder: A formação do patronato político brasileiro. 2 volumes. 8ª edição. São Paulo; Ed. Globo, 1989.


DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo; Ed. Martins Fontes, 2008.

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