Por trás de Bolsonaro há algo que remete a eventos longínquos, no tempo e no espaço, encadeados de forma a minar a democracia e tornar desimpedida a acumulação capitalista
Estátua de Adam Smith, Catedral de St. Giles, Edimburgo, Lothian, Escócia.
O sofrimento que é imposto aos cidadãos brasileiros não é devido à loucura de um governante. Por trás de Bolsonaro há algo que remete a eventos longínquos, no tempo e no espaço, encadeados de forma a minar a democracia e tornar desimpedida a acumulação capitalista. É o arranjo do pós-segunda guerra que agoniza, lançando os seres humanos numa aventura selvagem pela sobrevivência, sem mapas e bussolas para orientar as condutas.
Quando, nos primeiros dias de janeiro de 2011, morre num hospital tunisiano Moahmed Bouazizi, que se imolou em protesto contra fiscais corruptos que o impediram de ganhar a vida vendendo frutas nas ruas, teve início o que ficou conhecido como Primavera Árabe. A onda de protestos atravessou oceanos, alterou pautas e fraseologia, e desembarcou em Nova Iorque. No centro do capitalismo ficou conhecida como Occupy Wall Street. No norte da África, na Europa e na América, inclusive no Brasil do movimento Passe Livre, os levantes sociais tinham como alvo “o sistema”, encarnado nos governantes de ocasião.
Não havia, com não há agora, o componente de classe claramente marcado na insurgência. Não estavam em confronto os trabalhadores contra os patrões; nem, tampouco, havia programas socialistas para implementar. Sobrava somente descontentamento para com “o sistema”. Apenas os plutocratas pareciam conhecer o seu lado, conforme se depreende da afirmação de Warren Buffet: “há luta de classes, é certo, porém quem está travando esta guerra é minha classe, a classe dos ricos, e a estamos vencendo” (Harvey, 2011. p. 261.)
Essas manifestações, de certa forma, foram a linha divisória para com o mundo da social-democracia e do Estado de bem-estar social. A partir delas, a relação estabelecida entre a pressão dos seres do mundo do trabalho e a reação dos poderosos em termos de equação redistributiva, significando cidadania ampliada, se rompeu definitivamente. A fórmula ensaiada sob Thatcher e Regan em conjuntura anterior é radicalizada, sepultando definitivamente o acerto fordista-keynesiano domesticador do capitalismo e responsável pela vitória da democracia. Agora, o dinheiro manda!
De certa forma, a minoria dos endinheirados tem dificuldade de conviver com a democracia. Mesmo Adam Smith, no século XVIII, em sua obra fundadora da Ciência Econômica moderna, já admitia que por detrás da aparente harmonia social provocada por um mercado desimpedido há o conflito social e o poder dos mais fortes.
“As pessoas da mesma profissão raramente se reúnem, mesmo que seja para momentos alegres e divertidos, mas as conversações terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços. Efetivamente, é impossível evitar tais reuniões, por meio de leis que possam vir a ser cumpridas e se coadunem com espírito de liberdade e de justiça. Todavia, embora a lei não possa impedir as pessoas da mesma ocupação de se reunirem às vezes, nada deve fazer no sentido de facilitar tais reuniões e muito menos para torná-las necessárias.” (Smith, 1996. pp.172-173)
Nascida na Grécia como fórmula de governo restrito à participação apenas das minorias, a democracia moderna se consolidou como expressão do governo popular. O seu aperfeiçoamento acompanhando a história do Estado moderno e a expansão do capitalismo, apontou para o equilíbrio possível entre lógicas contrárias. De um lado, a do mercado, no qual indivíduos perseguem finalidades aquisitivas e egoísticas; de outro, a da sociedade política, onde se constrói o destino comum com base em ideais de justiça e solidariedade. Conflito e harmonia sob mediação da política. Construção da razão.
É justamente essa construção que estilhaça diante de nossos olhos. Para que ela funcione, são necessários os atores coletivos que organizem os insurgentes a partir de visões sociais de mundo, de programas, e busquem a produção do consenso nos fóruns adequados. A crítica ao “sistema”, que aproximou os plutocratas dos desesperados nas ruas dos mundo, desmoralizou os partidos e a própria política, deixando o espaço aberto para tipos aberrantes como Trump e Bolsonaro, por exemplo. São eles que regem massas desencantadas, não incorporadas ou sob o risco de exclusão da economia formal. São eles que as conduzem ao abismo.
A hora é dos partidos e da política. Um capitalismo de empreendedores, desregulado, significa o conflito e o seu contrário, a abominação totalitária. As estruturas econômicas que concentram a riqueza e o poder não produzem, por si mesmas, esclarecimento e justiça. Basta olhar com os olhos de ver. O espetáculo deprimente desta semana da pátria é financiado, salvo engano, por endinheirados ignorantes de sua própria humanidade.
BIBLIOGRAFIA:
HARVEY, David. El Enigma del capital y la crisis del capitalismo. Tres Cantos: Akal, 2016.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996.
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