O futebol, manifestação popular e democrática, é arma de disputa política e econômica entre os grandes.

Costa-Gravas
Em 1973, no dia 11 de setembro, o presidente chileno Salvador Allende foi assassinado por militares de seu país que bombardearam o palácio de governo e iniciaram uma sangrenta ditadura. Documentos que permaneceram secretos no Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos, liberados após quase meio século, comprovam o que todos sabiam e apontam mais. Não apenas os norte-americanos atuaram para derrubada e morte do presidente legitimamente eleito, como contaram com o apoio da Austrália.
Reportagem publicada pelo jornal El País, de autoria Rocío Montes, demonstra que a CIA, órgão norte-americano por trás da sabotagem contra as democracias latino-americanas no pós-segunda guerra, contou com o apoio de agentes do Serviço de Inteligência Secreta Australiano (ASIS) para espionar e dar suporte à conspiração que culminou com o golpe de estado.
“Os espiões acabaram deixando totalmente o país somente depois da intervenção militar que deu origem à sangrenta ditadura comandada por Augusto Pinochet, marcada por mortes, desaparecimentos e torturas.” (MONTES, 2021)
Um dia após o golpe, o Estádio Nacional do Chile foi transformado em campo de concentração. Durante aproximadamente dois meses, entre setembro e novembro, entre 20 e 40 mil pessoas conheceram os horrores do regime espremidas sob as arquibancadas. O relato do brasileiro Pedro Wrede, preso aos 20 anos de idade em Santiago, à jornalista Juliana Dal Piva, dá uma noção do horror:
“Eu estava passando mal da barriga e os caras me levaram lá embaixo. Desci o corredor e vi esse quadro dantesco. Um homem estava deitado no chão, dentro de um quarto e eles (soldados) falavam ‘esse não canta mais’. Eles estavam fazendo tiro ao alvo no corpo.” (DAL PIVA, 2015)[1]
O diretor grego Costa-Gravas, em 1982, usou a sétima arte para denunciar as atrocidades do regime e demonstrar o que ocorreu no Estádio Nacional. O filme Missing (O Desaparecido: um grande mistério), conta a história de um jovem norte-americano que imigrou para a Chile juntamente com sua esposa, após a vitória da Unidade Popular de Allende. Com o golpe, é perseguido por ser considerado subversivo, preso e levado para o estádio, onde encontra o seu fim.
Naqueles dias tormentosos, o selecionado nacional do Chile disputava uma vaga para a Copa do Mundo de futebol organizada pela FIFA, a ser realizada em 1974 na Alemanha então dividida. O adversário seria o selecionado da extinta União Soviética, em jogos de ida e volta. O primeiro, apenas 15 dias após o golpe, em Moscou diante de 60 mil espectadores, terminou empatado em 0 a 0. A partida foi tratada pela crônica esportiva como épica, uma “partida de valientes”.
O jornalista Axel Pickett retrata, a partir de depoimentos, no livro El partido de los valientes(Editorial Aguilar, 2003), o dramático cenário político e social que cercou os jogos. A situação vivida pelo jogador Francisco Chamaco Valdes, que após a classificação chilena em Santiago, num jogo em que a União Soviética se recusou a disputar, viu-se obrigado a retornar ao Estádio Nacional em busca de notícias de um amigo desaparecido, dá a dimensão do que acontecia.
A classificação chilena em 1973 remete ao que assistimos nos dias de hoje, enquanto uma guerra se desdobra no leste europeu em meio a conspirações que envolvem os interesses norte-americanos e refletem no futebol. Naquela ocasião, os soviéticos, diante do golpe de estado e da violência contra a população civil, pediram à FIFA que o jogo de volta após o empate em Moscou fosse em campo neutro; após a negativa, desistiram de jogar por questões morais.
“A União Soviética tinha anunciado publicamente, em outubro de 1973, que não jogaria no mesmo estádio que vinha sendo usado desde o golpe militar no Chile — no dia 11 de setembro — como um centro de detenção e tortura de prisioneiros políticos.” (PAPPON, 2013)
Hoje, o mundo é outro. Os norte-americanos aparentemente saíram vencedores da guerra fria e impõem a sua paz pelos quatro cantos. O conflito do leste já tem um vilão e a FIFA, órgão máximo do futebol, decidiu, “até nova ordem”, que o selecionado Russo está excluído das eliminatórias para a Copa do Mundo a ser realizada no Catar. Como lembrou o presidente Joe Biden, no discurso sobre o estado da União, no dia 1º de março: "As democracias estão à altura do momento e o mundo está claramente escolhendo o lado da paz e da segurança" (ZURCHER, 2022). É isso e sempre foi assim, não?
BIBLIOGRAFIA:
DAL PIVA, Juliana. A violência e o terror do pós-golpe no Chile. In: O Estado de São Paulo. Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2015. Disponível em: < A VIOLÊNCIA E O TERROR DO PÓS-GOLPE NO CHILE - Internacional - Estadão (estadao.com.br) >. Acesso em 05 de março de 2022.
MONTES, Rocío. Espiões australianos colaboraram com a CIA na intervenção dos EUA contra Salvador Allende. In: El País. Santiago, 10 de setembro de 2021. Disponível em: < Golpe de Estado no Chile: Espiões australianos colaboraram com a CIA na intervenção dos EUA contra Salvador Allende | Internacional | EL PAÍS Brasil (elpais.com) >. Acesso em: 05 de março de 2022.
PAPPON, Thomas. Boicote da URSS fez Chile jogar eliminatória da Copa sem adversário. In: BBC. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/11/131120_chile_x_urss_1973_tp >. Acesso em 05 de março de 2022.
PICKETT, Axel. El partido de los valientes. Santiago: Editorial Aguilar, 2003.
ZURCHER, Anthony. 'Erro de cálculo na Ucrânia', a mensagem a Putin em discurso de Biden. In: BBC. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60584618 >. Acesso em 05 de março de 2022.
NOTAS:
[1] Pedro Wrede se refere ao suplício, morte e violação do cadáver do cantor e compositor Victor Jara.
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