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Presidencialismo sob cerco: o Brasil entre o voto e o veto

  • Foto do escritor: Rogério Baptistini Mendes
    Rogério Baptistini Mendes
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura

Atualizado: há 7 dias

Enquanto o Executivo tenta governar, o Legislativo opera como freio deliberado às maiorias populares. Um presidencialismo sabotado por dentro se transforma em mecanismo de tutela das elites.

Il quarto stato. Giuseppe Pellizza da Volpedo
Il quarto stato. Giuseppe Pellizza da Volpedo

Lula foi eleito para governar sob o presidencialismo, sistema inscrito na tradição republicana brasileira por influência norte-americana. No século XVIII, os fundadores da República do Norte optaram por esse molde, inspirados nos ideais iluministas e na experiência colonial. Depois de submetidos à opressão do monarca britânico e de seu parlamento centralizador, criaram um sistema que deveria ser estável e funcionar como remédio contra a tirania — equilibrando uma liderança forte com a garantia das liberdades individuais. Tudo isso assentado na separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, cada qual com funções bem definidas e atuação independente, funcionando como freios e contrapesos para conter abusos.


No Brasil, a Constituição de 1988 adotou o regime republicano e o sistema presidencialista. Depois, em 1993, a população brasileira, por meio de um plebiscito, os confirmou — em sintonia com a tradição republicana, emprestando ainda mais legitimidade à escolha dos constituintes. Num país de dimensões continentais e com tamanha diversidade social e cultural, a escolha direta de um governante pelo povo, com mandato fixo, seria elemento de unidade nacional e, ao mesmo tempo, garantia democrática — com eleições regulares nas quais o destino comum pudesse ser debatido e decidido, como ensinam os manuais. Um avanço em relação à cidadania ampliada e ao autogoverno.


A realidade, entretanto, tem por hábito confrontar as ideias. E aqui, a análise social é chamada em socorro às formas da política. Porque quem empresta vida às instituições são os homens — e estes precisam ser observados em sua situação concreta, dentro da hierarquia social, ocupando posições que são resultado de construções históricas. E, entre nós, a minoria estabelecida aderiu à ordem de 1988 apenas enquanto seus privilégios não estivessem ameaçados pela rotina da democracia.


Quando surgiram, ainda que timidamente, avanços em termos de redistribuição de renda, riqueza ou oportunidades, certos segmentos da elite sentiram-se acuados em sua posição de mando e deram início à reação. Afinal, como quer fazer crer certa novilíngua de base religiosa, uma “ordem natural” das coisas estaria sendo ameaçada com propostas de reforma tributária progressiva, investimentos em educação e saúde públicas, programas de transferência de renda, cotas raciais e políticas de inclusão social.


Essa reação, inicialmente disfarçada sob o discurso da responsabilidade fiscal, ganhou corpo a partir de 2013, quando o pacto social e político em torno da Carta de 1988 começou a se esgotar. A insatisfação dos setores médios e dominantes foi canalizada para movimentos de direita e de extrema-direita que, sob o pretexto de combater a corrupção, a esquerda e uma suposta degeneração moral, passaram a defender uma ordem idealizada — e culminaram em ataques diretos às instituições democráticas.


O presidencialismo passou a enfrentar limitações severas, impostas por um parlamento cada vez mais ocupado por representantes dispostos a fazer retroceder conquistas populares e impor, pela força institucional, um regime de tutela da cidadania em favor das elites econômicas — velhas e novas. A produção de consensos pela via política foi desmantelada, e o bolsonarismo representou a sua expressão mais perfeita.


É neste contexto que o Congresso Nacional, ainda composto por muitos apoiadores da tentativa de golpe contra a posse do presidente Lula, sabota o presidencialismo, a República e, no limite, a própria democracia — e, sobretudo, o povo, em especial os pobres. Os exemplos são abundantes, e vão desde a falta de compostura de muitos deputados e senadores — que sistematicamente deslegitimam o resultado eleitoral — até a obstrução permanente da agenda governamental, com o objetivo claro de desgastar o Executivo e dificultar a administração pública federal.


Não bastasse, a apropriação de parte do orçamento pela via do Legislativo — o chamado “orçamento secreto” — tornou-se ferramenta de chantagem e de esvaziamento da função executiva, criando objetivos conflitantes com o planejamento estratégico do governo e inviabilizando os resultados previstos. Quem perde, no fim, é a sociedade política.


Esse desvirtuamento do presidencialismo não é casual — é meticulosamente planejado. Essa espécie de parlamentarismo mascarado tem como objetivo final impedir a ascensão social das camadas populares, pois tal ascensão representa ameaça direta à acumulação privada de riqueza e ao status das classes dominantes. Daí a prática da erosão do governo por vias institucionais. Um tipo de golpe com apoio ativo de analistas de imprensa, líderes religiosos, políticos da direita e da extrema-direita, todos zelosos pela manutenção do status quo.


O que se faz, em essência, é desconstruir o presidencialismo por dentro — para encurralar Lula e induzir os eleitores a cair no canto da sereia autoritária. De fato, seguimos mergulhados em uma regressão profunda. A prisão de Bolsonaro — e até de alguns militares — não será suficiente para deter esse processo. Basta observar a aliança entre os muito ricos e o governador de São Paulo.


Diante disso, impõe-se um desafio maior que a mera resistência: é preciso reconstruir. Reafirmar a política como campo legítimo da disputa democrática, em que o conflito de interesses não se resolve pela força, mas pela institucionalidade. A democracia não se esgota na eleição; ela se realiza plenamente quando as instituições operam em favor da maioria e quando o poder é exercido com responsabilidade, legitimidade e compromisso com o bem comum. Recuperar essa dimensão do presidencialismo é, hoje, um dever coletivo.

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