De Getúlio a Lula: os limites e as promessas do Brasil moderno
- Rogério Baptistini Mendes

- 26 de out.
- 3 min de leitura
O Brasil moderno nasceu sob o signo de Getúlio Vargas e envelhece sob a sombra de Lula. Entre ambos, estende-se quase um século de promessas cumpridas pela metade, de avanços interrompidos e de esperanças que sobrevivem à força da resistência popular. Aos oitenta anos, Lula encarna o êxito e o limite da democracia brasileira: é símbolo de um país que venceu o autoritarismo, mas ainda não superou as amarras de suas elites.

Getúlio Vargas foi o grande responsável pela construção do Brasil moderno. É certo que Juscelino Kubitschek completou a industrialização e deu forma ao espírito nacional-desenvolvimentista, mas foi o político gaúcho quem, com habilidade e senso histórico, pavimentou o caminho. Mesmo sem um projeto claro nos primeiros anos da década de 1930, Vargas assegurou a transição possível e, sobretudo, ergueu o edifício dos direitos sociais — herança que até hoje irrita as elites brasileiras. A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, permanece como o símbolo maior dessa obra.
Quase um século depois, outro personagem típico do Brasil moderno — um filho da classe trabalhadora, forjado nas lutas sindicais e nos movimentos populares — completa oitenta anos no exercício de seu terceiro mandato presidencial. Lula é, ao mesmo tempo, um feito e um sintoma: sobreviveu às forças que tradicionalmente destroem lideranças populares — a elite econômica, o conservadorismo político e a máquina judicial —, mas também expõe a dificuldade do campo progressista em se renovar. Seu maior legado talvez seja simbólico: o de mostrar que o povo brasileiro, forjado em séculos de escravidão e autoritarismo, conquistou o direito de ser representado por um dos seus.
Há, porém, um fosso a separar Getúlio e Lula — e compreendê-lo exige atenção às conjunturas. Vargas governou num período de crise de hegemonia do capitalismo mundial, aproveitou as brechas abertas pela Grande Depressão e impulsionou o país rumo à industrialização, ainda que dependente e desigual. Lula, por sua vez, precisou pactuar com o capital financeiro — pacto simbolizado pela Carta ao Povo Brasileiro, em 2002 — e adotou, no início do primeiro mandato, uma política econômica de caráter ortodoxo, que conteve o ímpeto reformista. Para o trabalho formal, os ganhos vieram mais pela valorização real do salário mínimo, pela ampliação da formalização e pelos programas de inclusão social do que por reformas estruturais. A grande reforma regressiva do mercado de trabalho viria depois, em 2017, já sob o governo Temer.
A longevidade de Lula no poder é, portanto, ambígua. Representa a força de uma biografia singular, mas também o esgotamento de um ciclo. A experiência, em tempos de superficialidade digital, é um valor subestimado; contudo, não basta envelhecer para ser sábio. A maturidade política exige consciência histórica e coragem de inovar. Lula mantém a autoridade de quem viu o Brasil de baixo e de dentro, mas sua trajetória recente revela um pragmatismo que dilui o impulso reformista de outrora.
O maior desafio de seu governo é a sucessão. Durante duas décadas, o carisma lulista asfixiou o surgimento de novas lideranças — dentro e fora do PT. O resultado é um governo legítimo, mas refém de sua própria história. Falta um projeto nacional renovador, capaz de dialogar com as novas gerações e com os dilemas do século XXI: a transição ecológica, o mundo digital, as novas formas de trabalho e de sociabilidade.
Ainda assim, é preciso reconhecer que os fatos colaboram para a persistência do lulismo. A ameaça autoritária da extrema-direita, regressiva e antidemocrática, obriga amplos setores da sociedade a preservar Lula como referência de estabilidade e resistência. O lulismo continua necessário enquanto a democracia estiver sob cerco. O desafio é transformá-lo em força criadora, capaz de gerar novos líderes e um novo projeto de país.
Getúlio foi o arquiteto do Estado nacional e das bases sociais da modernidade brasileira. Lula, seu herdeiro paradoxal, é o guardião das promessas inconclusas dessa mesma modernidade. Ambos traduzem, em épocas distintas, a luta do Brasil para existir como nação soberana e justa. O primeiro construiu o Estado; o segundo tenta preservá-lo. O futuro dependerá de quem consiga, enfim, reinventá-lo.






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