Da Nova Classe Média ao Neofascismo: Anatomia da Crise Democrática Brasileira
- Rogério Baptistini Mendes
- 17 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de ago.
A democracia brasileira vive uma crise profunda, nutrida por frustrações sociais, ressentimentos manipulados e uma pedagogia da intolerância.

A crise da democracia brasileira é real e seus sinais se exibem cotidianamente nas redes sociais, nas Câmaras de Vereadores e no Congresso Nacional, com reflexos no comportamento dos cidadãos. O desprezo pelas leis e pelas instituições, a disseminação da ideia de que o governo é inimigo da sociedade e a violência crescente são consequências de uma pedagogia torta que corrompe a sociedade política. As massas são educadas para acreditar no pior e viver em uma condição pré-política, marcada pelo medo e pela intolerância.
Embora essa situação não seja exclusiva do Brasil, aqui ela parece particularmente vinculada à dinâmica política recente, marcada por duas ascensões sequenciais: a da nova classe média de consumo e, em sua esteira, a da extrema-direita, que explorou as frustrações daquela.
Se retornarmos ao passado recente, os governos Lula e Dilma materializaram, por meio de políticas econômicas e sociais, a ascensão de milhões de brasileiros à condição de nova classe média. A valorização do salário mínimo, os programas de transferência de renda, o acesso ao crédito e a expansão da educação permitiram que pessoas historicamente excluídas fossem socialmente inseridas. A falha grave desse processo foi que a mudança de status não foi acompanhada por uma preocupação com a qualificação da cidadania, ancorando-se, em vez disso, apenas na abertura de um horizonte aquisitivo — moradia, automóvel, viagens — para os “de baixo”. E isso teve um custo.
Ao abrir o Mar Vermelho e permitir o vislumbre de uma terra prometida, os governos petistas se beneficiaram eleitoralmente do senso de conquista e das expectativas que suscitaram; mas, ao negligenciar o exercício fundamental de educar para a democracia, criaram as condições para o crescimento da extrema-direita. Em uma conjuntura de crise econômica, essa extrema-direita soube explorar a frustração e o ressentimento social, impondo sua agenda ideológica.
Sem pretensão de exatidão, é possível considerar o período de 2013-2014 — quando o país começou a sentir os efeitos da desaceleração econômica — como o início do divórcio entre os governos do PT, as massas e a democracia. Os gastos para as obras da Copa do Mundo, a exploração midiática dos escândalos de corrupção e a percepção de que a economia piorava minaram as expectativas ascendentes, sobretudo entre os beneficiários das políticas de inclusão. Essa nova classe média passou a sentir o seu caminho interditado. Suas frustrações foram politicamente exploradas por uma extrema-direita que ofereceu culpados claros para a perda de status — não os mecanismos econômicos complexos, mas políticos corruptos transformados em bodes expiatórios. Um discurso simplista, moralista e eficaz, que apelava ao resgate da ordem e dos valores pela eliminação dos “maus” e, no limite, do próprio sistema democrático.
Não é novidade a instrumentalização de frustrações, ressentimentos e até do ódio como armas políticas. Wilhelm Reich, ao estudar a ascensão do fascismo nas primeiras décadas do século XX, em Psicologia de Massas e o Fascismo (1933), demonstrou como emoções profundas são manipuladas não por argumentos racionais, mas por apelos viscerais, orgânicos, instintivos, que se manifestam no corpo dos indivíduos. A extrema-direita, ao apresentar um líder ungido por setores do neopentecostalismo político, soube tocar nos medos latentes: a insegurança econômica, a perda de status, a ameaça à família tradicional — oferecendo soluções simplistas. Mas essa mobilização, longe de libertar, aprisionou. Criou literalmente “o gado”. Forjou um sistema de repressão e controle de massas, que utiliza a energia de seus medos, bloqueios e ignorância como arma.
A internet e as redes sociais funcionaram, nesse processo, como veículos privilegiados da luta política. A estratégia da extrema-direita se baseou na difusão de fake news, catalisadoras das frustrações populares e que canalizavam emoções contra os inimigos imaginários que suas “narrativas” criavam: comunistas, professores, homossexuais, políticos, ambientalistas... O resultado é conhecido: o transbordamento da alucinação coletiva para além da política, alcançando áreas como a saúde pública — com resultados desastrosos, como a recusa à vacinação. A manipulação da emoção sepultou a razão. A eleição de Bolsonaro, a criação do “gabinete do ódio” e a tentativa de golpe de Estado inserem-se nessa mesma lógica.
O professor norte-americano Benjamin Teitelbaum, no livro Guerra pela Eternidade: o retorno do radicalismo e a remodelação do mundo (2021), recorda a influência que Steve Bannon exerce sobre a extrema-direita brasileira, articulando-a com uma rede internacional de reacionários iliberais — que tem em Trump, Milei e Bolsonaro alguns de seus expoentes. A noção de “guerra pela eternidade” — conceito de Bannon — refere-se a uma cruzada contra o globalismo e o liberalismo, considerados decadentes. Essa “Internacional da Extrema-Direita” explora o ressentimento das massas e o conecta às elites temerosas de perder privilégios, promovendo uma ofensiva contra a democracia, suas instituições e os valores do Iluminismo.
Hoje, desenvolver uma estratégia eficaz de defesa da democracia e da razão é urgente — e isso vai além da simples demonização das big techs ou da regulação das redes sociais. Considerando a natureza política da disputa pelo controle da sociedade, é imperativo que os democratas superem a crítica reativa e elaborem um programa proativo, com uma pedagogia voltada à conquista da hegemonia. O objetivo deve ser a proteção da cidadania e a recuperação da capacidade crítica das pessoas, garantindo-lhes autonomia por meio do acesso à educação e a informações de qualidade — em suma, a proposição de uma reforma intelectual e moral.
Não basta recorrer ao Judiciário para responsabilizar as plataformas digitais ou punir atos antidemocráticos. É preciso reenquadrar a compreensão da realidade e a lógica da prática política. Um novo programa é fundamental para enfrentar os desafios da época.
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