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  • Foto do escritorRogério Baptistini Mendes

Ensaio sobre a emancipação da mulher: notas históricas e sociológicas

A emancipação das mulheres é a emancipação dos homens e de toda a humanidade, que se verá livre da ignorância e dos preconceitos que a alimentam. É a realização possível de um ideal de Justiça que tenha alcance universal e rompa com as divisões arbitrárias que separam os humanos num cotidiano sem sentido e infeliz, limitador de seu pleno potencial criador.

Michele Perrot


1- A EMANCIPAÇÃO DA MULHER EM PERSPECTIVA HISTÓRICA E SOCIAL

“A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito a mulher que ensine, nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois, o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade” (Paulo. Primeira epístola a Timóteo.)

 

Num 8 de março vivenciado sob ameaças de regressões em termos de direitos, é oportuno discutir algumas questões relativas à vida social das mulheres, ultrapassando a ideia de gênero com qualidades constituídas em relação a outro, como por exemplo, o feminino em relação ao masculino, buscando compreender a historicidade de sua situação, ou seja: a inferiorização que as atinge no cotidiano, expressando uma cotidianidade infeliz[1]. Esta, conforme argumenta José de Souza Martins,

“é substantivamente a consciência do lugar das contradições na era do cotidiano. Ela é o momento da história que parece dominado pelo repetitivo e pelo que não tem sentido. [...] é, justamente, o tempo em que íntimo e o familiar são invadidos por essa dilaceração, pela percepção falseada, deformada, mutilada” [2].

 

Como é de se supor, a cotidianidade está informada pela história de reprodução da economia capitalista no contexto da sociedade burguesa que lhe dá suporte e sustentação. Trata-se do vivido alienado, em que o que se faz não está relacionado com o que se deseja e o que se pensa, mas dominado pela tendência de escravizar a todos inerente ao sistema de produção do capitalismo. Em um texto famoso, Karl Marx explica essa contradição nos seguintes termos:

“A escravidão da sociedade civil é aparentemente a maior das liberdades, pois parece deixar o indivíduo perfeitamente independente. O que o indivíduo entende como sua própria liberdade é o movimento (não mais refreado ou restringido por um vínculo comum ou pelo homem) dos elementos alienados que compõem sua vida, como a propriedade, a indústria, a religião; na verdade, esse movimento é a perfeição da própria escravidão”[3].

 

A questão de fundo, portanto, diz respeito ao processo histórico que determina a inferiorização das mulheres, mais do que as diferenças atribuíveis ao gênero, pois não se trata aqui de querer promover a “masculinização” das mulheres ou a “feminilização” dos homens, nem, tampouco, de construir uma sociedade unissex, mas de tentar compreender a natureza do problema contemporâneo.

 

No Brasil, sobretudo, a questão se apresenta na extrema desigualdade social que marca a vida das mulheres em termos de trabalho, remuneração e poder; e, também, da discriminação social e cultural que as vítima. A emancipação feminina se postula como emancipação de toda a sociedade, como realização integral das possibilidades contidas na história em termos de alargamento do horizonte social e cultural do humano; em termos da realização de uma comunidade moral onde todos tenham a sua liberdade e dignidade respeitada e assegurada.

 

Uma primeira aproximação ao tema se faz necessária explicando que não estou tratando aqui de diversidade sexual propriamente, mesmo considerando a abordagem legítima. A discussão sobre a noção mesma de mulher, com as qualidades atribuídas ao gênero, em geral tem levado a uma polifonia muitas vezes confusa que associa a situação da mulher à situação dos homossexuais, das lésbicas e de outros grupos em uma sociedade sob o domínio opressor do poder cultural e social dos homens. O fenômeno de fato existe e exige enfretamento, mas creio que ele reduz o alcance do processo que, no cotidiano, inferioriza as mulheres e obstrui a sua realização enquanto sujeito de seu próprio destino numa sociedade não-alienada, em que todos são sujeitos.

 

A historiadora Michelle Perrot, em seu muito bem fundamento livro Minha história das mulheres, descreve a existência obscura a que foram condenadas as mulheres antes de conhecermos o princípio de sua emancipação no curso das revoluções burguesa e industrial que dão forma à modernidade. Criaturas privadas de visibilidade e do direito de participar do debate sobre a vida comum, condenadas ao silêncio, por muito tempo as mulheres tiveram a sua humanidade anulada. Nem mesmo a ciência e os novos saberes, na esteira do movimento das Luzes e da Ilustração, foram capazes de reconhecer a sua humanidade. Em uma passagem de sua obra, Perrot cita o pensamento de um filósofo daquele período, que dizia que

“não se pode, hoje, contestar seriamente a evidência da inferioridade da mulher, muito mais imprópria do que o homem à indispensável continuidade, tanto quanto à alta intensidade, do trabalho mental, seja em virtude da menor força intrínseca de sua inteligência, seja em razão de sua maior suscetibilidade moral e física”  [4].

 

Tratadas como inferiores, as mulheres numa sociedade tradicional estavam condenadas a uma espécie de escravidão. Apesar de trabalharem desde sempre, elas não passavam de ajudantes dos maridos, submetidas à lógica patrimonial das relações e do mando. Conforme esclarece a filósofa Suzana Albornoz, “dentro deste contexto [a mulher] aparece como uma servidora da espécie, uma espécie de vestal da família, que se torna entidade sacral” [5]. Daí, talvez, as funções a elas associadas no contexto da vida comum, como a reza, o fazer benzeduras, a ligação com o mundo íntimo da religião e da magia e o afastamento da ação concreta, útil e utilitária que, no mundo moderno, se exerce para além da casa e do espaço privado, na vida pública das ruas. O que nos ajuda a compreender o seu confinamento à vida doméstica na realização de uma rotina que as consome dia após dia na dependência de outro, que nem por isso é senhor do seu próprio destino, também ele determinado pelas ilusões de sua época, pelos produtos de sua mente que ganham autonomia e objetividade. Trata-se, evidentemente, daquilo que Karl Marx, em sua obra O Capital, definiu como fetichismo.

“A função do fetichismo, e da religião em geral, é livrar o fiel da responsabilidade por suas ações. Não é ele quem está agindo, é Deus (ou o demônio) que age dentro e por intermédio dele; ele não pode nem criticar, nem modificar, nem transformar o mundo; ele, como o próprio mundo, é apenas o veículo de uma Vontade que não é a sua” [6].

 

Sem se reconhecerem como senhores do seu próprio mundo, homens e mulheres, mais aqueles do que estas repetem um agir sem sentido e desinformado, que repõe o domínio da criatura sobre o criador, do mundo criado e objetivo sobre o construtor capaz de subjetivar e emprestar sentido aos próprios atos. Assim, o que aparece como emancipação nada mais é do que realização de um possível histórico alienado e alienante contido nas formas assumidas pelas estruturas de produção e reprodução da vida. A indústria e a urbanização reclamam as mulheres não apenas como trabalhadoras, mas como consumidoras. Os preconceitos tradicionais são vencidos pela dinâmica da nova forma de vida, sem que sejam superados no cotidiano, principalmente em uma sociedade como a brasileira, que não conhece o ritmo de transformação das sociedades capitalistas originárias. Aqui, o hibridismo de formas e tempos se reflete no cotidiano das gentes, e das mulheres com maior intensidade, criando uma nova inferiorização que atualiza a submissão e o confinamento do passado na alienação moderna. É o que torna a mulher duplamente vítima: do presente e do passado não superado. Conforme explicam João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais,

“a sujeição da mulher ao marido não era mais absoluta. Mas seu dia a dia era muito mais sacrificado que o do homem, ‘pois não apenas lhe compete todo o trabalho da casa –que na roça compreende fazer roupas, pilar cereais, fazer farinha, além das atribuições culinárias e dos arranjos domésticos- mas ainda labutar a seu lado’” [7].

 

Com a modernização promovida pela intensificação da forma industrial do capitalismo, surge a ilusão de que o progresso atingirá a todos. O que ocorre, entretanto, é que os pontos de partida para o acesso às novas oportunidades geradas são desiguais. Os homens simples que se oferecem aos novos postos de trabalho, sem a qualificação necessária, carregando os requisitos do modo de vida tradicional, são incorporados em situação de subalternidade; as mulheres, oriundas de um mundo que lhes vedava o existir autônomo, são as que mais sofrem, apesar da ascensão conquistada quanto à ordem anterior. No início de sua emancipação, estas, tímidas e acanhadas, sem a instrução e a socialização requerida pela nova forma de vida urbana, se encaminham para o trabalho doméstico, contribuindo para liberar as mulheres urbanas e de classe média para o mercado.

“O emprego doméstico feminino era, naquela época, muito pior do que se pode imaginar hoje: começava com o amanhecer do dia e só acabava quando a louça do jantar estava lavada; folga, só aos domingos, depois do almoço; o quartinho apertado; o assédio sexual do filho do padrão, às vezes do próprio patrão. (...) ‘Trabalha porque precisa’, ‘porque o salário do marido não dá’. Não porque queira, pois ‘o certo é a mulher ficar em casa’, ‘tomar conta da casa’, ‘cuidar do marido e dos filhos’”[8].

 

O sentimento confuso das mulheres das primeiras levas da modernização brasileira ainda persiste em determinadas regiões, entre determinados grupos. A sobreposição de tempos em nossa modernidade difícil não permite a superação integral de um agir condicionado por uma consciência subalterna. Vítimas de si próprias e dos homens também vitimados pelo cotidiano estranho e sem sentido, as mulheres reificam com o seu comportamento o mundo que as exclui, como se ele fosse externo e objetivo, constituindo uma natureza intangível à ação reformadora e criadora. Assim, quando elas superarem essa condição, vencerem a inferiorização e as formas de violência que a acompanham, estarão libertando não apenas a si próprias, mas aos seus companheiros humanos. A construção de si mesmas é também a construção de uma historicidade não-alienada para os homens.

“Quando os membros de uma sociedade se definem pela própria capacidade e vontade de mudar ao invés de manter uma ordem estabelecida, eles não podem mais ser definidos apenas pela sua pertença social. Um ator social nasceu. Mas ele é muito mais do que a consciência de si vista separadamente da consciência dos outros; ele carrega consigo a ideia de direito à liberdade e à criação, de um direito natural que pertence a todos. E a afirmação deste direito significa que os indivíduos implicados se sentem chamados a participar das iniciativas que estimulem a sociedade a se transformar, criando nela desequilíbrios sempre maiores. Esta força atinge todas as formas de ação social” [9].

 

Mais do que ouvir a instrução em silêncio, como pregava o apóstolo Paulo, as mulheres devem se assenhorear do seu destino. A sua submissão é a submissão de todo o gênero humano. A sua libertação, por conseguinte, é a libertação de todos. Nas frestas da cotidianidade, na tensão social gerada pela exclusão, pela humilhação e pelas dificuldades do dia a dia, o possível histórico se mostra como luta que repara e emancipa, capaz de realizar a Justiça em toda sua extensão. Na parte, no diverso, o destino do todo, do universal. Complementação totalizante entre mulheres e homens que se reconhecem como mutuamente necessários.

 

2- À GUISA DE CONCLUSÃO


As mulheres, na história, foram personagens secundárias ou ausentes. Estigmatizadas pelo cristianismo que conformou a cultura ocidental, a sua sorte foi determinada pelo mundo em que nasceram. Este mesmo mundo, que fazemos cotidianamente e nos faz ser o que somos, é o ambiente social que, ainda hoje, na civilização científica e tecnológica, mantém as mulheres em situação de inferioridade em relação aos homens, vítimas de preconceitos enraizados e de difícil superação.

 

A emancipação das mulheres é a emancipação dos homens e de toda a humanidade, que se verá livre da ignorância e dos preconceitos que a alimentam. É a realização possível de um ideal de Justiça que tenha alcance universal e rompa com as divisões arbitrárias que separam os humanos num cotidiano sem sentido e infeliz, limitador de seu pleno potencial criador. Afinal de contas, como lembra Alain Touraine, “os homens e as mulheres vivem juntos os grandes acontecimentos, as rupturas do tempo” [10]. Não é aceitável, pois, que desfrutem as suas conquistas desigualmente.


3- BIBLIOGRAFIA


Alain Touraine. O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.


João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais.  Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: Fernando A. Novais (coord.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Volume 4.  São Paulo: Cia das Letras, 1998.


José de Souza Martins. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Contexto, 2010.


Marshall Berman. Aventuras no marxismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.


Michelle Perrot. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2008.


Suzana Albornoz. As mulheres e as mudanças nos costumes: ensaios da igualdade e da diferença. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008.

 

4- NOTAS


[1] A noção de cotidiano é componente da sociologia totalizante de Henri Lefebvre. O uso que aqui faço é puramente instrumental, sem preocupação com o rigor, mas não deixa de ser uma apropriação simplificada das elaborações daquele autor.


[2] José de Souza Martins. Apontamentos sobre vida cotidiana e história. In:_______. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Contexto, 2010, p. 94. 


[3] Karl Marx. The holy family: critique of critical critique. Citado por Marshall Berman. Aventuras no marxismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, pp. 53-54.


[4] Michelle Perrot. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 23.


[5] Suzana Albornoz. As mulheres e as mudanças nos costumes: ensaios da igualdade e da diferença. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008, p. 15.


[6] Marshall Berman. Op. cit., p. 60.


[7] Os autores se referem à modernização da estrutura social do campo em função do processo de industrialização do Brasil. Muito do que ocorre com a mulher, então, se reproduz na cidade, no contexto da migração que se intensifica a partir dos anos de 1950. Cf. João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais.  Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: Fernando A. Novais (coord.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Volume 4.  São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 576.


[8] João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais. Op. cit., pp. 598-600.


[9] Alain Touraine O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007, p. 35.


[10] Alain Touraine Op. cit., p. 141.

 

 


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