Quando o povo já não governa
- Rogério Baptistini Mendes
- 15 de jun.
- 3 min de leitura
Crise econômica, ódio político e manipulação midiática corroem a democracia e abrem espaço para o avanço do autoritarismo.

Em Ruptura (2017), Manuel Castells alerta para a natureza da crise que vivemos. Ela não é apenas econômica, mas também política. Trata-se de uma crise profunda, que atinge o próprio autogoverno das sociedades políticas modernas. A democracia naufraga diante da descrença dos cidadãos. A precariedade material, o desemprego e a crescente distância entre milhões de pobres e poucos bilionários, sustentados pelo discurso da austeridade, liberaram forças perigosas. A legitimidade do processo político, das instituições e do próprio Estado foi colocada em xeque, emergindo uma palavra de ordem quase universal: “não nos representam!”.
É evidente que a concentração de renda, ao alimentar a rebelião das massas contra o establishment político, também fomenta as distorções que corroem a democracia e, em última instância, ameaçam a própria ideia de autogoverno. Essas tensões, porém, são exploradas e manipuladas por grupos que apostam no aprofundamento do caos. Como lembra Giuliano Da Empoli em Os engenheiros do caos (2019), há aqueles que se alimentam das emoções negativas e buscam capturar os revoltados para implementar seus projetos de poder. Pouco importa a coerência do que expressam; interessa-lhes explorar o medo e insuflar o ódio, influenciando decisões políticas por meio da manipulação emocional.
Além da disseminação de fake news, da perseguição a cientistas e professores, e do revisionismo histórico, esses grupos manipulam a opinião pública de forma ainda mais sutil, recorrendo a sondagens e pesquisas de opinião. Estas formas rudimentares de sociologia, que Pierre Bourdieu qualificava de "ciência sem cientista", impõem aos entrevistados problemas que não são os seus, mas os dos que financiam e divulgam as pesquisas, oferecendo resultados como se fossem retratos fiéis da realidade. Na verdade, são efeitos da própria manipulação do que se quis medir, afastando-se das verdadeiras preocupações cotidianas das pessoas.
Essa manipulação da vontade popular contrasta frontalmente com a ideia de autogoverno que sustenta as democracias modernas. Desde Jean-Jacques Rousseau e seu O Contrato Social (1762), a democracia é concebida como um regime em que os cidadãos elegem representantes, fazem as leis e são livres ao obedecer às leis que eles mesmos estabeleceram. Como escreveu o cidadão de Genebra: “a obediência à lei que se prescreve a si mesmo é liberdade”. Hoje, entretanto, assistimos à busca pela submissão e pela imposição de formas autoritárias e iliberais de exercício de mando. Exemplos disso abundam no cenário global: Milei, Trump, Bolsonaro e tantos outros fascistas espalhados pelo mundo.
Recorrendo a Jürgen Habermas, recordamos que a democracia constitui uma forma de autogoverno quando cidadãos autônomos participam da formação da vontade política por meio do exercício do discurso racional e inclusivo. Essa liberdade comunicativa exige indivíduos autônomos, críticos e preparados para o debate público, educados desde cedo numa pedagogia cívica democrática e conscientes de seu papel na esfera pública. Nesse espaço público, os meios de comunicação, as associações, movimentos sociais, sindicatos e partidos devem estar ativos e vivos. É precisamente essa razão pública que vem sendo sistematicamente sabotada: a manipulação da opinião e das emoções inviabiliza tanto a autonomia privada quanto a pública. Sem ambas, resta apenas o exercício puramente formal do voto, abrindo espaço para o esvaziamento do modelo participativo e a imposição de tiranias.
O caso brasileiro
No caso particular do Brasil, agoniza o regime saído da Carta de 1988. Nos púlpitos, nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado, discursos de ódio e mentiras ganham status de verdades oficiais. Uma entidade vaga, conhecida como “os mercados”, manipula opiniões por meio de sua influência sobre os meios de comunicação social. Grandes conglomerados de mídia digital colocam-se acima das normas jurídicas do Estado. Assistimos, assim, ao rápido declínio da razão e à trágica morte da verdade. Com isso, ruem o autogoverno democrático e os direitos individuais, pois, como adverte Habermas, um não sobrevive sem o outro.
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