A dignidade humana não se negocia
- Rogério Baptistini Mendes

- 22 de nov.
- 3 min de leitura
Quando um governador tenta transformar “dignidade humana” em escudo retórico para proteger um condenado por tramar contra a democracia, não estamos diante de opinião, mas de um ataque ao próprio sentido da Constituição.

Há momentos na vida pública em que a retórica deixa de ser mero gesto expressivo e se transforma em ataque frontal às bases que sustentam a democracia. A recente declaração do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de que a prisão preventiva de Jair Bolsonaro “atenta contra a dignidade humana”, insere-se exatamente nesse território e exige resposta por compromisso com a Constituição e com a integridade da linguagem pública
Quando um chefe do Executivo do estado mais populoso do país flexibiliza o sentido de “dignidade humana” para defender alguém em prisão preventiva por decisão do STF, e que já foi condenado pela corte por liderar uma trama golpista contra a ordem democrática, ultrapassa o limite do aceitável. Não se trata de divergência jurídica. Trata-se de uma manipulação conceitual que corrói o debate público, afronta o constitucionalismo e alimenta a narrativa política de quem sempre viveu de desacreditar instituições.
A dignidade da pessoa humana não é ornamento retórico nem salvo-conduto para golpistas. É um valor universal e inegociável, construído ao longo do século XX após as experiências mais sombrias da humanidade. A Constituição de 1988 a inscreve como fundamento da República; o Direito Internacional a reconhece como eixo civilizatório de qualquer ordem democrática. Instrumentalizá-la para vitimizar quem conspira contra o Estado de Direito é, para dizer o mínimo, um desrespeito à história do constitucionalismo e aos mortos que ensinaram ao mundo o preço da dignidade negada.
Hannah Arendt, ao examinar o surgimento dos regimes totalitários, mostrou que o autoritarismo prospera quando a esfera pública é fragilizada por ataques sistemáticos às instituições e pela corrosão do “mundo comum”. É precisamente essa corrosão que se observa quando autoridades públicas insinuam perseguições inexistentes, atacam o Judiciário e tentam transformar réus por tramas golpistas em mártires civis.
É nesse ponto que o alerta de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt se torna incontornável. Em Como as democracias morrem, eles demonstram que, no século XXI, a morte das democracias ocorre menos por tanques nas ruas e mais pela erosão interna conduzida por líderes eleitos: “não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder.” Palavras importam. E podem, sim, abrir fissuras por onde o autoritarismo avança.
Afirmar, como fez Tarcísio, que Bolsonaro teve sua “dignidade violada” por uma decisão judicial tomada dentro do devido processo legal é inverter a ordem moral das coisas. É ignorar que a dignidade protegida pela Constituição é universal: pertence ao preso pobre, ao cidadão comum, à vítima da violência de Estado. Peretence a todos aqueles que, diferentemente dos poderosos, não dispõem de advogados caros, microfones abertos ou legiões organizadas de apoiadores. Dignidade não é privilégio. É universalidade. E é exatamente isso que um governante deveria compreender antes de aspirar a qualquer cargo maior.
Um país democrático não pode tolerar que um chefe de governo tente constranger o Judiciário; que evoque “dignidade humana” apenas quando convém ao seu grupo político; que flerte, ainda que retoricamente, com narrativas golpistas. Se Bolsonaro está preso por decisão judicial, que sua defesa recorra dentro das regras do Estado de Direito. Isso, e apenas isso, é o que a dignidade humana exige: debate racional, devido processo, respeito institucional.
A dignidade humana não pode servir de biombo para quem atentou contra ela. Em vez de atacar o Supremo Tribunal Federal, o governador deveria reafirmar o princípio que diz defender. Em vez de insinuar perseguição, deveria lembrar que ninguém, absolutamente ninguém, está acima da lei. Em vez de relativizar um golpe de Estado, deveria recordar que o Estado laico, a separação de poderes e a Constituição não são peças decorativas, mas são as colunas que sustentam a liberdade de todos nós.
O Brasil pagou caro demais por sua democracia para aceitar que governadores tratem a Constituição como panfleto de campanha. A dignidade humana é, sim, o coração normativo da República. E justamente por isso não pode ser sequestrada por narrativas que flertam com o autoritarismo.
No fim das contas, há uma verdade simples: a dignidade humana não protege quem ataca a dignidade da democracia. E quem exerce cargo público deveria ser o primeiro a saber disso.






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