A Guerra da Extrema-Direita Contra a Verdade e a Democracia
- Rogério Baptistini Mendes
- há 5 dias
- 5 min de leitura
O avanço do autoritarismo no Brasil tem encontrado terreno fértil na reescrita da história, no ataque à cultura e na tentativa de silenciar o pensamento crítico nas escolas. A censura disfarçada de moralismo e a perseguição à literatura e às ciências humanas revelam um projeto mais amplo: o controle da realidade por meio da ignorância institucionalizada.

O Brasil, de fato, naufraga sob as trevas do fascismo. A direita e a extrema-direita parecem realizar a obra do Ministério da Verdade descrito em 1984, obra de George Orwell, na qual um prosaico funcionário do Departamento de Registros tem a tarefa diária de reescrever a história, destruir provas, controlar a realidade e minar a verdade objetiva. Essa parece ter sido uma das tarefas do intitulado Gabinete do Ódio, controlado por um dos filhos do ex-presidente golpista Jair Bolsonaro; parece, igualmente, ser a tarefa à qual se dedicam analistas nos órgãos de mídia, congressistas, líderes religiosos e políticos obscuros espalhados pelas prefeituras do país. Todos estariam empenhados em fazer valer o terceiro elemento do trídico orwelliano: “ignorância é força”.
Quando um grupo de degenerados ataca a ministra Marina Silva no ambiente do Congresso Nacional, inventa dados, mente e falsifica registros, age com o deliberado objetivo de destruir o passado e reescrever a história para controlar a realidade. O partido totalitário descrito por Orwell sabe que o controle do passado é o controle do presente, pois se a percepção da realidade é maleável, ela passa a depender daquilo que hoje se convencionou chamar de controle da narrativa. O objetivo final é minar a verdade objetiva e apagar a distinção entre fato e ficção, de forma a não existirem fatos independentes da vontade de quem está no controle. Hannah Arendt, em 1951, no livroAs Origens do Totalitarismo, denunciou a situação, ao explicar que o súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele que não enxerga diferença entre o verdadeiro e o falso, sendo incapaz de mobilizar critérios de pensamento. A busca pelo controle social e pela manipulação da vontade política é a finalidade da direita e da extrema-direita que sabotam a democracia brasileira.
Não por outro motivo abundam exemplos de supressão e de perseguição ao pensamento crítico nos ambientes de ensino, com o assédio a professores e especialistas em educação. Nas esferas federal, estadual e municipal, políticos reacionários apresentam Projetos de Lei inspirados no Movimento Escola Sem Partido e tentam impor a censura aos educadores, criando um ambiente de terror, insegurança e denuncismo nas salas de aulas. A isso se soma a retirada de disciplinas de Ciências Humanas e Sociais — desvalorizadas como inúteis e ideológicas — e de obras literárias dos currículos — classificadas como impróprias e imorais. O objetivo é dificultar a compreensão da sociedade e impedir a formação de indivíduos críticos pela limitação do universo social dos alunos a uma visão administrada e conservadora do status quo.
O exemplo de uma vereadora que investiu contra a adoção de um livro de Jorge Amado pela rede de ensino é ilustrativo. Em uma sessão da Câmara, no município de Itapoá, em Santa Catarina, uma parlamentar do partido do ex-presidente Jair Bolsonaro argumentou que Capitães da Areia, escrito em 1937, é inadequado aos estudantes e sua leitura é indicada para maiores de 18 anos, pois romantiza o estupro e a violência infantil. Sem apresentar um único parecer pedagógico ou documento técnico, a candidata a censora tenta controlar o conteúdo educacional, suprimindo uma obra literária clássica, presente em vestibulares e currículos de todo o país exatamente por abordar questões sociais relevantes como a pobreza e a marginalização dos menores. Sob pretexto de defesa da moral e proteção da pureza das crianças do município, o que se busca na prática é limitar a formação intelectual e crítica, impedindo a reflexão sobre o país, sua história e sua realidade. Não bastasse, a ignomínia vem associada à lembrança de que o autor era um comunista e à alegação de que a leitura do livro seria uma suposta "doutrinação ideológica" da esquerda. O horror!
Jorge Amado, além de ser um dos grandes da literatura brasileira e universal, é um dos autores nacionais mais traduzidos — 50 idiomas e 80 países — e estudados no mundo e, de fato, foi comunista. Sua atuação engajada esteve ligada ao antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o levou a ser eleito Deputado Federal Constituinte pela Bahia, em 1946. No Congresso, foi o autor da lei que garantiu a liberdade de culto do Brasil, importante conquista para referendar a laicidade do Estado e para garantir que as religiões de matriz africana deixassem de sofrer perseguição. Com a perda do seu mandato em 1948, quando o PCB teve o seu registro cassado, se exilou na Europa e continuou a sua militância no Movimento Internacional pela Paz, ao lado de intelectuais e artistas. Sua vida e sua obra, mesmo após a ruptura com o partido, sempre foram marcadas pela denúncia contra as injustiças sociais e pela defesa dos oprimidos. Era um democrata e um defensor do Brasil, de seu povo e de sua cultura.
Denunciar um livro de Jorge Amado como imoral e inadequado — ou como destinado à doutrinação ideológica — sem embasamento pedagógico e técnico é o mesmo que encarregar Winston Smith, o funcionário do Ministério da Verdade, de apagar o seu registro. É tentar abolir o legado literário que ajudou a moldar a percepção do Brasil aqui e no exterior, jogando para o esquecimento os temas da cultura e da identidade, sobretudo, nestes tempos de reavivamento do racismo e crescimento do neopentecostalismo evangélico. A Bahia, o povo negro e o sincretismo religioso, com o candomblé, os personagens que refletem a pluralidade das gentes, sobretudo os “de baixo”, os oprimidos, não interessam à novilíngua da época, voltada à exaltação do empreendedorismo e à responsabilização dos pobres pela pobreza.
Nuccio Ordine, filósofo, professor e ensaísta italiano, falecido em 2023, em um pequeno e grande livro intituladoA Utilidade do Inútil: Um Manifesto (2013), demonstra que justamente os conteúdos perseguidos e censurados pela direita e pela extrema-direita são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento crítico, da imaginação, da empatia e da capacidade de questionamento. A arte, a literatura, a filosofia e as ciências básicas, consideradas inúteis pelos que advogam uma visão deturpada e utilitarista, ao serem suprimidas, permitem o ataque à verdade e a destruição do pensamento crítico, essenciais à destruição da democracia. E no mundo da internet, dos smartphones e das redes sociais sem controle, essa é a engenharia política que implanta o autoritarismo.
Em tempos sombrios, preservar a memória e defender o pensamento crítico são atos de resistência. É preciso reafirmar, com vigor, que uma democracia não se sustenta sem educação livre, sem cultura plural e sem o direito de questionar. O ataque à obra de Jorge Amado, como a de tantos outros, não é apenas um ataque à literatura, mas à própria ideia de Brasil como nação diversa, contraditória e viva. Cabe a todos que acreditam na democracia impedir que a ignorância se torne força e as escolas uma fábrica de autômatos.
Comments