A marcha da fé e o risco ao Estado laico
- Rogério Baptistini Mendes
- há 4 dias
- 3 min de leitura
Quando religião e política se misturam, o pacto democrático fica ameaçado

A Constituição de 1988 ainda não completou quarenta anos e muito do que ela prevê segue sem regulamentação, dificultando sua plena aplicação. A jovem democracia que ela sustenta, por sua vez, enfrenta ameaças. Golpistas, com ou sem farda, conspiram às claras e, para piorar, exploram os temores das massas por meio da religião. Uma religião que promete libertação do sofrimento e prosperidade material com base no esforço individual, desvinculada da comunidade e da transcendência. Uma doutrina moldada para manipulação política e ideológica, que oferece consolo diante da degradação do tecido social e prega como solução uma autossuficiência isolada.
Essa visão de mundo, quando adotada na vida privada, já é danosa. Ela enfraquece a percepção de que vivemos sob um contrato social que sustenta a comunidade democrática. Dificulta o autogoverno e prejudica a ideia de um destino comum. Quando levada à esfera pública como plataforma de ação, torna-se ainda mais perigosa.
No Congresso Nacional, a autoproclamada bancada evangélica — associada a outras, como a ruralista — soma mais de 200 parlamentares. Muitas vezes, suas votações seguem preceitos religiosos, desrespeitando a laicidade do Estado. Isso representa uma ameaça constante à Constituição cidadã e ao regime democrático.
Desde o surgimento da sociedade política moderna, pensadores como John Locke, na Carta sobre a Tolerância (1689), já defendiam a separação entre Igreja e Estado. Para Locke, a fé pertence à esfera privada e não pode ser imposta pela força. Ao poder público cabe proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos — e nada além disso.
Sam Harris, em Carta a uma Nação Cristã (2006), também alertou para os riscos de se substituir a razão pela fé na política. Isso pode levar à perseguição de grupos vulneráveis, ao desprezo pela ciência e à destruição da própria democracia por divisões criadas em nome de Deus.
Nos Estados Unidos, Donald Trump fez uso da religião para consolidar um projeto autoritário. No Brasil, Jair Bolsonaro seguiu caminho semelhante. O objetivo comum é manipular consciências e associar a figura do líder à defesa de uma suposta integridade moral e familiar contra “infiéis”: comunistas, homossexuais, hereges e outras minorias.
Antes deles, Thomas Hobbes, em O Leviatã (1651), já apontava que a religião nasce do medo do invisível e da incerteza diante da morte e dos perigos. Criamos deuses e ritos como resposta a essas angústias. Quando não há controle, a religião se torna fonte de divisão e conflito — por isso, Hobbes defendeu que o soberano regulasse a autoridade religiosa para evitar a anarquia e a guerra civil.
O modelo republicano brasileiro, inspirado na Revolução Francesa e na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, consagrou o princípio da laicidade. O artigo 19 da nossa Constituição proíbe o poder público de estabelecer cultos, subvencionar igrejas ou manter relações de dependência com organizações religiosas.
Por isso, preocupa a associação entre política e religião em eventos como a Marcha para Jesus, em São Paulo. A presença de líderes políticos ao lado de pastores e até de membros do Judiciário, em ambiente que mistura fé e plataforma política, lança dúvidas sobre a neutralidade do Estado. Importa reforçar: não se trata de atacar a fé de ninguém, mas de proteger o princípio constitucional que garante a todos a liberdade de crença e a segurança jurídica.
Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo (1951), advertiu que a destruição do espaço público prepara o caminho para o autoritarismo. A manipulação religiosa para fins políticos desfigura a democracia e ameaça as liberdades.
O Estado laico não é detalhe ou formalidade: é um dos pilares da convivência democrática. Desrespeitá-lo, em nome da fé ou da política, abre espaço para retrocessos autoritários. É papel de toda a sociedade estar atenta para que o pacto que garante nossas liberdades não seja corroído sob o disfarce de marchas ou discursos de salvação.
Referências:
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. Trad. Rafael Bittencourt. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Trad. J. M. Pinto de Oliveira. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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