A quem interessa a cidadania?
- Rogério Baptistini Mendes
- há 7 dias
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Enquanto a cidadania social recua no mundo, programas como o Bolsa Família são atacados com argumentos falaciosos. Mas a luta política, como ensinam Piketty e Sen, é também uma luta por justiça e dignidade.

Em um diálogo com Michael J. Sandel na Escola de Economia de Paris, em 2024, o professor de economia Thomas Piketty identificou as razões pelas quais a desigualdade de renda e de acesso à propriedade é um problema. Ela rouba a dignidade das pessoas, impede o acesso aos bens básicos para a vida e dificulta a plena participação política, corroendo o princípio do autogoverno. Se considerarmos que, na Europa, por exemplo, os 10% mais ricos detêm um terço da renda e metade das propriedades — e que no Brasil a situação é ainda pior —, temos a dimensão do desastre. A cidadania está em risco e, como é óbvio, os direitos, tal como os concebemos. É o alvorecer autoritário e iliberal que se anuncia.
Em uma obra clássica das ciências sociais, Cidadania e Classe Social (1949), Thomas Marshall apresenta a evolução da cidadania em nossas sociedades políticas modernas. Seu argumento central pode ser resumido na ideia de que a cidadania plena apenas se realiza quando os direitos conquistados ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX estão garantidos a todos os membros da sociedade, o que nos leva ao Estado de Bem-Estar Social. Foi esse ente, graças às políticas keynesianas, que garantiu a confluência de direitos civis, políticos e sociais. A autonomia dos indivíduos no plano privado, o direito de participar nos governos e a segurança econômica ampliaram a cidadania para além do aspecto formal, promovendo uma maior igualdade social — algo reconhecido por Piketty.
A obra de Marshall é otimista ao descrever a evolução dos direitos como um processo linear. Ela permite crer no aprofundamento da igualdade no longo prazo pela via da consolidação da democracia, mas a realidade, infelizmente, não a confirma. E isso é demonstrado pelo sociólogo Ulrich Beck, falecido em 2015. No livro Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade (1986), o intelectual alemão argumenta que o progresso tecnológico, derivado da ciência e da técnica, gera ameaças imprevistas — novos riscos globais que se manifestam como insegurança econômica, desemprego estrutural, migrações e crises climáticas. Diante disso, a cidadania recua e é redefinida. Não há horizonte radiante.
Em linha semelhante, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman aponta as transformações da cidadania derivadas da perda de relevância do Estado e do crescente papel das finanças globalizadas nas decisões políticas. Os direitos, que formavam uma base de pertencimento coletivo e criavam uma cidadania sólida, tornaram-se gradativamente títulos jurídicos vazios. O trabalho e a segurança social se tornaram precários, e as pessoas marginalizadas perderam o acesso real à condição de cidadãos — tornaram-se supérfluas, inúteis. Haja vista como são tratadas pelos governantes e líderes da direita e da extrema direita global. O único valor de um cidadão passou a ser ditado pelo mercado, uma condição utilitária, desvinculada da ideia de membro pleno da sociedade política.
Beck e Bauman convergem ao apontar uma espécie de regressão nos direitos que dão vida à cidadania. É visível, em toda parte, a erosão dos direitos sociais à educação, saúde e previdência; o trabalho precarizado nas plataformas digitais, tratado sob o eufemismo cínico de "empreendedorismo", avança de forma alarmante; o autoritarismo político de líderes de direita e extrema direita restringe os direitos civis com base em argumentos religiosos e morais; e cresce a vigilância e o controle sobre os indivíduos, com graves consequências sobre a privacidade e, por óbvio, sobre o exercício da liberdade individual.
É nesse contexto que o Bolsa Família — um direito social instituído por meio da Emenda Constitucional nº 109/2021, que tornou o direito à renda básica uma política de Estado — sofre ataques no Brasil. Os argumentos de empresários contrários à cidadania social e de políticos de seu campo baseiam-se em falácias de natureza econômica, moral, política, ideológica e fiscal. Bradam que o programa desestimula o trabalho e incentiva a preguiça; seria uma forma de assistencialismo populista e, sobretudo, improdutivo e de alto custo fiscal. As evidências, contudo, demonstram o contrário. Mas a realidade pouco importa quando a luta que se trava é política, com fins distributivos. E é a acumulação capitalista que se reproduz.
Sabemos que nem toda luta política é uma disputa por distribuição. Questões como reconhecimento, valores e liberdade também estão em jogo. Contudo, é inegável que, ao longo do tempo, a disputa distributiva — que se manifesta na forma de polarizações entre impostos progressivos ou regressivos, educação e saúde públicas ou privadas, e proteção aos salários ou aos lucros — resultará em diminuição ou aumento das desigualdades e, portanto, em maior ou menor cidadania, conforme aqui discutimos.
Piketty, especialmente em Capital e Ideologia (2019), trata explicitamente a luta política como um processo essencial para a definição dos efeitos da acumulação capitalista. Ele a enxerga como o caminho para limitar a desigualdade estrutural do capitalismo moderno, que tende a concentrar riqueza e renda, caso a sociedade não intervenha por meio da política democrática — algo que vai além do voto e requer instituições redistributivas. A desigualdade não é resultado de uma “lei natural”, como querem fazer crer economistas apologetas de modelos fisicomatemáticos. Sistemas fiscais e direitos sociais são criações políticas, fruto das lutas sociais.
Se pensarmos a desigualdade de renda e de acesso à propriedade a partir da noção de justiça — não idealizada, mas concreta, baseada em direitos reais que permitam uma vida com dignidade —, chegamos novamente ao debate sobre cidadania. É o economista e filósofo indiano Amartya Sen, ganhador do Nobel de Economia em 1998, quem nos permite pensar o Bolsa Família como um programa que melhora concretamente a vida das pessoas e promove justiça. Afinal, somente insensíveis que enxergam as pessoas como coisas — algo que a herança escravocrata brasileira mantém viva entre setores da elite — são capazes de negar aos pobres o direito de se alimentar adequadamente, manter os filhos na escola, ter acesso à saúde e à estabilidade mínima para procurar um trabalho decente sem se sujeitar à humilhação e à superexploração de ocupações precárias. Isso é aumentar as opções reais de vida — o que Sen chama de promoção da liberdade substantiva. Uma forma de justiça que os ricos muitas vezes se empenham em negar aos pobres.
Ainda que em escala limitada, o Bolsa Família — conforme demonstram o IBGE, o IPEA e o Banco Mundial — não reduziu a oferta de trabalho, como afirmam falsamente empresários e políticos da direita e da extrema direita. Mais de 70% dos beneficiários trabalham ou procuram emprego. Isso ocorre porque a renda do programa é insuficiente para garantir a reprodução da vida. Trata-se apenas de um complemento mínimo que cria um espaço de segurança para o cidadão. A visão instrumental-utilitarista do ser humano ignora essa realidade.
A cidadania, portanto, não é um dado fixo, mas uma construção política e histórica constantemente ameaçada pelas forças da desigualdade e da exclusão. Defender programas como o Bolsa Família é defender uma sociedade mais justa, em que todos tenham o direito real de existir como sujeitos plenos. Essa é, afinal, a base de qualquer democracia digna desse nome.
Notas:
Marshall, T. H. Cidadania e Classe Social. Zahar, 1967 (original de 1949).
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
Beck, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
Piketty, Thomas. Capital e Ideologia. Intrínseca, 2020.
Sen, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Companhia das Letras, 2000.
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