A Sombra do Passado: Como a Direita Radical Desumaniza a Política Contemporânea
- Rogério Baptistini Mendes
- há 3 dias
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Na primeira metade do século XXI, líderes da direita radical, como Donald Trump, Benjamin Netanyahu e Javier Milei, mobilizam o medo e o ressentimento coletivo com discursos que evocam a defesa da “civilização ocidental”. Ao prometer o retorno a um passado idealizado, apagam a complexidade histórica e promovem a exclusão do 'outro', corroendo as bases democráticas e humanistas da política.

As primeiras décadas do século XXI trazem ecos sombrios do início do século anterior, quando o mundo conheceu a catástrofe de duas guerras mundiais, o genocídio como política de Estado e a destruição atômica. Hoje, como naquele passado sombrio, líderes da direita e extrema-direita utilizam a ideia de defesa da civilização ocidental para justificar perseguições, repressões e conflitos. Cada um à sua maneira, Donald Trump, Benjamin Netanyahu e Javier Milei mobilizam o medo coletivo contra a noção de uma humanidade plural e compartilhada. Fazem dos árabes — especialmente dos muçulmanos —, dos comunistas, homossexuais, feministas e imigrantes, alvos de exclusão e violência. Apresentam-se como restauradores de um mundo idealizado que só existe na imaginação de grupos desprovidos de pensamento crítico e conhecimento histórico. É a retrotopia de que nos fala Zygmunt Bauman (2017).
Em tempos marcados pela crescente desigualdade de renda e de oportunidades, e pelo desemprego estrutural, a criação de inimigos imaginários surge como uma solução fácil para a manutenção do status quo. Esses líderes exploram o medo e o ressentimento, tal como fez Adolf Hitler na Alemanha pós-Tratado de Versalhes (1919). O slogan de Trump, America First, evoca o nacionalismo, e junto com Make America Great Again, propõe um retorno a um passado glorioso supostamente destruído por inimigos internos e externos — democratas, imigrantes, feministas, ambientalistas e opositores da civilização cristã e ocidental.
A crise econômica foi um dos principais pilares da ascensão do nazismo. A imposição de pesadas indenizações à Alemanha pelo Tratado de Versalhes devastou a economia e alimentou o ressentimento popular. Hitler canalizou esse sentimento, prometendo restaurar a grandeza nacional, culpando inimigos internos e externos — especialmente os judeus. Javier Milei, em seus discursos, adota lógica semelhante: apresenta-se como um salvador que irá restaurar uma Argentina outrora rica e respeitada, supostamente arruinada pelo peronismo e pela esquerda.
A linhagem desses líderes de direita radical ignora o conceito de humanidade como um bem comum. Sob o pretexto de defender valores ocidentais e cristãos, promovem políticas excludentes e violentas. Devemos a Claude Lévi-Strauss (1949) uma 'arqueologia' desse conceito: ao se encontrarem, grupos humanos passaram a reconhecer traços comuns, construindo a ideia de humanidade na diversidade, na interação e na coexistência. Para ele, "a humanidade não se define pela existência isolada de um povo, mas pelo conjunto das culturas que, cada uma trazendo sua contribuição original, formam um todo maior" (LÉVI-STRAUSS, 1952).
Foi essa noção de humanidade que se perdeu no Holocausto. Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, relata em É isto um Homem? (1947) como os prisioneiros foram sistematicamente desumanizados pelos nazistas. A violência só foi possível porque os algozes não reconheciam nos prisioneiros a condição de semelhantes. Situação comparável ocorre em Gaza, onde a violência sistemática contra os palestinos, sob a liderança de Netanyahu, opera pela negação da alteridade — um método de desumanização que a história já mostrou ser terreno fértil para o autoritarismo. Como escreve Levi: "No campo, tudo era hostil. A fome, o frio, o cansaço, a dor, a sujeira. Mas, sobretudo, a luta cotidiana contra a tentativa de nos arrancar a consciência de sermos homens" (LEVI, 1947).
Os movimentos de direita radical também instrumentalizam a religião. Apresentam-se como guardiões de uma moral baseada numa visão idealizada da civilização judaico-cristã ocidental. Propõem uma lógica binária: o bem contra o mal, a virtude contra o vício — sendo estes sempre atribuídos ao 'outro'. Essa moralidade seletiva torna-se um instrumento de poder, transformando categorias éticas em dispositivos de disciplina e controle social. É essa lógica que mina a cultura democrática e alimenta o autoritarismo.
Richard Dawkins, em Deus, um delírio (2006), alerta para os perigos do fanatismo religioso e sua funcionalidade para regimes autoritários. A intolerância, fruto da doutrinação, fomenta o ódio e impede o pensamento crítico. Segundo ele, "a religião nos ensina a estar satisfeitos com explicações que não explicam nada" (DAWKINS, 2006). Assim, o ideal coletivo de humanidade desaparece quando a crença cega substitui o pensamento racional e empático.
Diante desse cenário, a “retrotopia” surge como um convite perigoso a um passado imaginário de exclusão e violência. A história, no entanto, nos ensina que a humanidade sempre avançou ao reconhecer e valorizar o outro. Resistir à desumanização e reafirmar os princípios da solidariedade e da diversidade não é apenas uma exigência ética, mas a única via possível para preservar a cultura democrática e as instituições que sustentam a vida em comum. O futuro da humanidade depende da nossa capacidade de lembrar — e aprender com — o passado, para assim construirmos um mundo verdadeiramente compartilhado.
Referências:
Bauman, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
Dawkins, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Lévi-Strauss, Claude. Race et Histoire. UNESCO, 1952.
Levi, Primo. É isto um Homem? São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (original de 1947).
Tratado de Versalhes, 1919. Arquivo Histórico Digital.
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