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Entre a democracia e o autoritarismo, não há simetria

  • Foto do escritor: Rogério Baptistini Mendes
    Rogério Baptistini Mendes
  • 13 de jul.
  • 4 min de leitura

A recente imposição de tarifas comerciais ao Brasil pelo governo Trump reacende o debate sobre a chamada polarização política no país. Mas esse é um falso antagonismo.

Karl Popper
Karl Popper

O debate sobre as tarifas comerciais impostas ao Brasil pelo governo Trump traz novamente à superfície o tema da polarização política — tão explorado pela mídia corporativa, que insiste em igualar o presidente Lula ao ex-presidente Bolsonaro. Essa equiparação pode enganar os incautos, mas revela mais do que má vontade em relação ao líder petista. Expõe um claro intuito de manipulação da opinião pública, operando sobre a forma como a realidade é percebida.


Construída ao longo do processo histórico, a ideia de polarização política se alimenta do antagonismo surgido durante a redemocratização, desde os anos 1990, entre o PSDB e o PT — partidos nascidos da resistência à ditadura militar, ambos com forte base social em São Paulo, o estado mais desenvolvido da federação. É possível afirmar que essa polarização se intensificou a partir das jornadas de junho de 2013, quando manifestações populares iniciadas pelo Movimento Passe Livre foram capturadas pela extrema-direita e convertidas num amplo movimento nacional contra a corrupção e a política tradicional, com foco em ataques à centro-esquerda no poder.


A conjuntura econômica difícil, marcada pela aceleração da inflação, intensificou a crise de legitimidade que abalou o sistema político e o governo, acuado por manifestações de rua e pela Operação Lava Jato — um caso evidente de judicialização da política, no qual instituições do Ministério Público e do Judiciário foram instrumentalizadas para fins políticos. O resultado foi o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, num caso claro de lawfare.


A cobertura espetaculosa promovida pela mídia corporativa às ações da Lava Jato, somada ao vazamento seletivo de depoimentos e informações processuais, contribuiu para a criação de um ambiente propício às eleições de 2018. Um juiz se apresentava como herói e cabo eleitoral; um inexpressivo ex-deputado do baixo clero foi alçado à condição de mito; e a esquerda e os democratas foram carimbados como corruptos. O resultado é conhecido: a polarização entre Lula e Bolsonaro foi consolidada no imaginário coletivo.


Nesse contexto, a mídia corporativa cumpriu papel decisivo na difusão da ideia de uma suposta polarização política simétrica. Sua cobertura sensacionalista dos eventos políticos e, sobretudo, da Lava Jato, amplificou o que a novilíngua da época chamava de “narrativa”, explorada pelos extremistas de direita nas redes sociais. A vitória de Bolsonaro consolidou o ataque à institucionalidade democrática sustentada pela Constituição de 1988. O objetivo dos que manejaram essas forças ficou claro: fazer retroceder a ordem democrática ao status quo ante, com efeitos deletérios sobre a cidadania.


Ao situar Lula e Bolsonaro como polos opostos, criou-se intencionalmente uma falsa equivalência. Entre os dois, não há uma divergência democrática resolvível no contexto da ordem constitucional em vigor, pois um deles — Bolsonaro — não a aceita nem a respeita, apesar de insistir, vulgarmente, em "jogar dentro das quatro linhas da Constituição". Trata-se, na verdade, de uma sabotagem contínua da democracia conquistada pelas lutas políticas e sociais do povo brasileiro. A extrema-direita despreza leis e instituições. A tentativa de golpe de Estado, os ataques ao Poder Judiciário e à soberania nacional revelam suas verdadeiras intenções. Portanto, se há polarização, ela se dá entre democratas e iliberais antidemocráticos — o que esvazia completamente a simetria fabricada pelos analistas da mídia corporativa que se pretendem isentos.


Insistir em colocar no mesmo plano, como se fossem partes de um mesmo problema, democratas que buscam o consenso e extremistas que apostam no dissenso radical é um desserviço à sociedade. Essa falsa equivalência legitima os inimigos da liberdade e da democracia, naturalizando a sabotagem das instituições e do Estado de Direito, a deslegitimação do processo eleitoral e do governo, e o uso do conflito como arma política. É exatamente isso que fazem aqueles que toleram o bolsonarismo e seus aliados.


Em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945), Karl Popper — um dos filósofos mais influentes do século XX — formulou o chamado Paradoxo da Tolerância. Segundo ele, a tolerância, enquanto valor liberal, quando estendida aos intolerantes, se torna uma arma contra si mesma. Ao aceitar, como parte do jogo democrático, ideologias totalitárias que alimentam a extrema-direita em suas vertentes política e religiosa, os tolerantes não defendem a liberdade — pavimentam o caminho para a sua destruição. Por isso, não basta contrapor argumentos racionais aos intolerantes: estes devem ser combatidos com a força coativa das leis, de forma legal e legítima.


A visão do outro como inimigo — tão presente na obra do jurista e filósofo alemão Carl Schmitt, O Conceito do Político (1927) — viola o exercício democrático da política. Essa concepção deslegitima a pluralidade e transforma a política em cruzada moral pela aniquilação dos adversários. É justamente essa lógica que orienta os think tanks e grupos políticos por trás da ascensão da extrema-direita e do bolsonarismo, responsáveis também pela disseminação da ideia de polarização. Sob o disfarce de defensores de ideias econômicas liberais e de valores conservadores, operam sobre a opinião pública utilizando-se da mídia corporativa, de instituições de ensino e de influenciadores para empurrar a esquerda e os democratas para o campo do “inimigo”, deslegitimando sua existência política.


É preciso nomear com precisão o que está em jogo. Não se trata de uma simples disputa entre dois projetos antagônicos de poder, mas de uma confrontação entre democracia e autoritarismo, entre o pluralismo e o extremismo. Aceitar a falsa simetria é abdicar da responsabilidade de defender a Constituição, as instituições e os valores democráticos. Em tempos sombrios, a clareza é um dever.

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