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Democracia e Verdade

Foto do escritor: Rogério Baptistini MendesRogério Baptistini Mendes

Atualizado: 14 de jan.

A luta pela destruição da verdade é uma luta contra a democracia. Bolsonaro e os seus ministros vivem disso.

Hannah Arendt


A ideia de uma sociedade governada por todos os seus membros é essencialmente moderna. Ela reclama que os deliberantes compreendam partilhar um destino comum e, sobretudo, sejam conscientes de sua condição de participantes de um pacto que a todos alcança.


Para além do caráter altamente abstrato da construção histórica e teórica que dá sustentação ao mundo moderno, a democracia representativa está apoiada num processo civilizatório, na ciência e na aceitação da verdade. O Estado laico, a universalidade das Leis e a religião como pertencente à esfera privada, particular aos interesses de cada indivíduo, são as bases do funcionamento político e jurídico de uma lógica que coordena liberdade e autocontenção individual em função do equilíbrio e da prosperidade social.


O debate sobre o caráter absoluto das liberdades individuais, em plena pandemia de covid-19, foi explorado por quem considera a sociedade política apenas um aglomerado de estranhos. Serviu para finalidades políticas e ideológicas, enquanto desorientou os viventes e aumentou espetacularmente o número de vítimas de uma doença evitável. É de pasmar que tenha acontecido e que ainda gere repercussões, após mais de 600 mil vidas perdidas somente no Brasil.


Enquanto a pandemia continua a vitimar brasileiros, o governo Bolsonaro avança em sua estratégia de destruição da verdade. Todo o esforço de seu ministério é baseado no repúdio filosófico da objetividade, ao ponto de confundir os próprios adversários políticos, incapazes de formular um programa consensual de enfrentamento à insanidade. A manifestação do ex-presidente Lula da Silva contrária à vacinação obrigatória, em plena pandemia, é apenas mais um sintoma da confusão:

“Eu sou contra a obrigatoriedade da vacina. Se o Moisés não quiser tomar a vacina, não vai tomar. Ninguém vai te obrigar a tomar vacina. Mas também você não vai poder ir para os lugares públicos“. (LULA DIZ…, 2022)


Num certo sentido, ao subverter as estruturas da realidade, transformando tudo em narrativas, Bolsonaro se mantém no controle do cenário político, erodindo diariamente a democracia representativa, os partidos e as instituições da República. E, mesmo que derrotado na disputa eleitoral, sua tropa continuará a fazer estragos. Manifestos de pais contra a vacinação dos filhos, o crescimento da intolerância e da violência política e ideológica demonstram que a sociedade está em processo de fragmentação.


A verdade é fundamental para a democracia e para autonomia do indivíduo. Condorcet, citado por Todorov, argumenta que a razão comum não está condenada a um caos de opiniões contraditórias. Ela pode ser regulada por máximas que pertençam ao consenso formado por homens esclarecidos:

“Nem todas as opiniões são iguais, e não se deve confundir a eloquência de uma palavra com a justeza de um pensamento. Tem-se acesso às luzes, não se fiando à iluminação de um único, mas reunindo-se duas condições: primeiro, escolher ‘homens esclarecidos’, isto é, indivíduos bem-informados e capazes de raciocinar; em seguida, levar a buscar a ‘razão comum’, colocando-se em situação de diálogo argumentado”. (TODOROV, 2008. p. 80)


A verdade e a moral, seja ela religiosa ou não, pertencem a esferas separadas e apresentam consequências distintas quando esgrimidas no debate público. A confusão pós-moderna que rejeita as fronteiras e nega as verdades objetivas, sob o argumento de que a realidade é incorporada por meio de filtros de raça, gênero e classe social, por exemplo, serve politicamente à extrema-direita e ao bolsonarismo em particular. Os impulsos mais selvagens contidos pelo processo civilizatório são libertados e o temor Tocquevilliano de uma tirania da maioria se torna muito presente.


A separação entre as esferas religiosa e política e a expansão da educação pública de base científica contribuíram para a consolidação das modernas sociedades democráticas. Hoje, a internet e as redes sociais se transformaram em espaços de proselitismo e de guerra cultural, locus de uma suposta democracia direta que faz transbordar para a vida concreta a descrença como potência. Se tudo é narrativa submetida ao escrutínio do indivíduo, o contrato social e a noção de justiça são impossíveis. A Terra continuará a sua órbita em torno do Sol, mas isso não importa. É só um ponto de vista.


A luta pela destruição da verdade é uma luta contra a democracia. Bolsonaro e os seus ministros vivem disso. Ao explorar as emoções, com máximas de uma mística religiosa, e ao deturpar os fatos os equiparando às opiniões que temos sobre eles, inviabilizam a convivência e transformam a política em guerra. Atuam no sentido de liberar as pessoas das restrições internalizadas que tornam possível a civilização (ELIAS, 1994.) E criam o súdito ideal, com estrutura psíquica embotada, incapaz de lidar com frustrações e cheio de ódio. Como afirma H. Arendt:

“O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre verdadeiro ou falso (isto é, os critérios do pensamento)”. (ARENDT, 1951. p. 526)


A democracia brasileira está cansada, mas ainda segue viva. Apesar da confusão no Estado, há caminhos pavimentados para a construção de um novo contrato social, capaz de recuperar o senso de pertencimento a uma comunidade de destino. É preciso coragem para não ceder ao discurso fácil, ter líderes preparados para a tarefa além de partidos, essas organizações tão desprestigiadas, mas necessárias para a organização de alternativas políticas racionais indispensáveis à existência mesma da sociedade democrática.


BIBLIOGRAFIA:

Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1994.


LULA DIZ que ninguém é obrigado a tomar vacina, mas não vacinados deveriam ficar em casa.O Estado de S.Paulo. 29 de janeiro de 2022. In: < https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-diz-que-ninguem-e-obrigado-a-tomar-vacina-mas-nao-vacinados-deveriam-ficar-em-casa,70003964421 > . Acesso em 30 de janeiro de 2022.


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