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  • Foto do escritorRogério Baptistini Mendes

O bolsonarismo despreza os pobres, não a pobreza

Atualizado: 29 de jul.

A regressão histórica imposta pelo bolsonarismo nos remete aos momentos mais dramáticos na história da vida dos trabalhadores pobres.

Jean Charles Léonard de Sismondi


O bolsonarismo é formado por uma reunião de tipos aberrantes, alguns fardados, outros não. Em comum, essa gente ostenta desprezo pelo povo, sobretudo pelos humildes, e uma visão tosca de qual seja a finalidade da sociedade política que governam. A noção de bem comum dos manuais de Teoria do Estado lhes é indiferente, uma vez que imprimem à República um caráter particularista, excludente e autoritário, com corte fundamentalista evangélico em oposição à Constituição que o seu presidente jurou respeitar ao ser empossado.


A falta de consideração pelos humildes ficou evidenciada na fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, quando em fevereiro de 2020, ao defender a alta do dólar, bradou: “Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí.” [1]. Quanto ao desrespeito à laicidade do Estado, a indicação de André Mendonça para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello é exemplar da confusão promovida pelo bolsonarismo entre a visão particular da facção e o interesse público. Como vociferou o presidente, na lógica que lhe é própria:

“Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o estado é laico. O estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares [Alves, ministra]: Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico"[2].


Em menos de dois anos, após juntar-se com empresários que enxergam os pobres como carvão para a acumulação desimpedida a que chamam de progresso, o bolsonarismo nos entrega mais de 600 mil mortos pela covid-19 e um país destroçado pela fome, desindustrializado e sem perspectiva de futuro para a maioria. As grandes esperanças despertadas pelo capitão ignorante que se elegeu com gesto de arma e ideias grotescas sobre os direitos humanos convergiram para um cenário de Charles Dickens, com a elite se lambuzando com dinheiro enquanto os pobres padecem o seu destino nas workhouses do presente.


Para quem não sabe ou não se lembra, as workhouses eram instituições às quais os pobres eram confinados na Inglaterra que se industrializava e urbanizava aceleradamente, vendo crescer o problema social. Paul Strathern comenta sobre como Malthus emprestou aos inescrupulosos um argumento, com o seu Ensaio sobre a População:

“no próprio dia de sua morte uma nova Lei de Assistência Social foi aprovada. Esta em conformidade com seu pensamento econômico. Decretava que todos os trabalhadores fisicamente aptos, mas incapazes de se sustentar a si mesmos ingressassem numa workhouse. Ali, as famílias eram separadas, as condições tornavam-se deliberadamente severas, e todos estavam sujeitos a um regime de humilhação vingativa por um corpo de funcionários sádicos. Os internos frequentemente obrigados a viver a base de papas e roer ossos. Mães e filhos eram postos para trabalhar desfiando estopa; e homens válidos tinham de moer ossos para a alimentação de animais, ao lado de criminosos e lunáticos” (2003, p. 114)


Aos cidadãos com alguma sensibilidade é impossível não pensar em como a nossa elite de empresários e proprietários de terra é alheia à vida dos trabalhadores, qualificados como seres moralmente inferiores. A luta do parlamento britânico no século XIX pelo fim das Lei dos Pobres, a assistência que assegurava um subsídio aos que ganhavam abaixo do nível de subsistência remete, em nossos dias, ao reformismo sem projeto de país, voltado unicamente contra os fracos, conforme a iniciativa de Bolsonaro barrada pelo Senado, em setembro, a MP 1045/2021. A medida, com os acréscimos que recebeu na Câmara dos Deputados, executava uma minirreforma trabalhista, indo além da autorização para a suspensão de salários e jornada de trabalho durante a pandemia da covid-19[3]. É como se assistíssemos à implementação de uma iniciativa derivada das lições de Malthus visando conter o aumento populacional e, também, disciplinar os pobres por seus excessos.


Enquanto empresários inescrupulosos exploram a oportunidade e vendem ossos[4] neste novo capitalismo desregrado, lustrado por ideologias que mesclam conceitos de administração de empresas, neurolinguística e teologia cristã, resultando num individualismo obsessivo, o Ministro da Economia multiplica a sua renda privada em paraísos fiscais[5], demonstrando o quão distantes estamos da verdadeira República e de um governo efetivamente democrático. Não bastasse, o presidente veta iniciativa que visa atender as mulheres carentes de recursos para comprar absorventes higiênicos[6]. E a Ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos ecoa a sua grosseria ao defender o veto: “As mulheres pobres sempre menstruaram nesse Brasil e a gente não viu nenhum governo se preocupar com isso. E agora o Bolsonaro é o carrasco, porque ele não vai distribuir esse ano.”[7]


Não serão as eleições que se avizinham que irão reconduzir a sociedade política brasileira ao trilho da razão iluminista e enquadrá-la ao espírito de sua Constituição. Elas marcam uma mudança urgente e necessária, mas o caminho para a recuperação da cidadania e dos brasileiros é longo. Ele passa pela reconstrução da cultura pública com base em valores de solidariedade e justiça. Os trabalhadores e os pobres não podem ser responsabilizados por sua condição e lançados à própria sorte.


Como diria Charles Sismondi, um reformista social do passado, há uma função para o Estado, que é defender os fracos do apetite dos fortes, “para impedir que os homens sejam sacrificados em nome do aumento de uma riqueza da qual eles não obterão proveito algum”. (Sismondi, apud Gray, 1948, p. 209)


BIBLIOGRAFIA:


Alexander Gray. The Development of Economic Doctrine. Londres: Longmans, Green, 1948.


Paul Strathern. Uma Breve História da Economia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.


NOTAS:


[1] Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada’. In:< https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365. > Acesso em 11 de outubro de 2021.


[2] Bolsonaro diz que vai indicar ministro 'terrivelmente evangélico' para o STF. In:< https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml > Acesso em 11 de outubro de 2021.


[3] Senado derruba MP com minirreforma trabalhista. In: < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/09/01/senado-derruba-mp-com-minirreforma-trabalhista> Acesso em 11 de outubro de 2021.


[4] “Osso é vendido, e não dado”: placa é retirada de açougue após fiscalização. In: < https://www.metropoles.com/brasil/osso-e-vendido-e-nao-dado-placa-e-retirada-de-acougue-apos-fiscalizacao > Acesso em 11 de outubro de 2021.


[5] Com fortuna em offshore, Guedes defendeu fim de taxa de paraíso fiscal. In: < https://www.istoedinheiro.com.br/com-fortuna-em-offshore-guedes-defendeu-fim-de-taxa-de-paraiso-fiscal/ > Acesso em 11 de outubro de 2021.


[6] Bolsonaro veta distribuição gratuita de absorvente menstrual. In: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/10/07/bolsonaro-projeto-absorvente-feminino.ghtml > Acesso em 10 de outubro de 2021.


[7] Damares defende veto de Bolsonaro: ‘Tem que decidir se a prioridade é a vacina ou o absorvente’ . In: < https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/damares-defende-veto-de-bolsonaro-tem-que-decidir-se-a-prioridade-e-a-vacina-ou-o-absorvente/ > Acesso em 11 de outubro de 2021.


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