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A República do Veto

  • Foto do escritor: Rogério Baptistini Mendes
    Rogério Baptistini Mendes
  • há 6 dias
  • 9 min de leitura

A cada ciclo histórico, quando o desenvolvimento ameaça se tornar democratização real, o país aciona seu mecanismo recorrente de bloqueio. Mudam os instrumentos, mas permanece o núcleo: a recusa das elites brasileiras em partilhar poder, renda e destino.

Florestan Fernandes
Florestan Fernandes

A história republicana brasileira não é uma simples sucessão de governos, eleições e alternâncias pacíficas de poder. Desde meados do século XX, ela se revela como um campo persistente de veto. Cada vez que um projeto nacional-popular tenta articular desenvolvimento econômico, soberania e inclusão social, uma engrenagem conhecida se move: mudam os atores, mudam os instrumentos, mas a função permanece a bloquear, silenciar e punir.


O Brasil vive sob aquilo que Florestan Fernandes chamou de revolução burguesa inconclusa: modernização econômica sem democratização social; capitalismo sem cidadania; progresso administrado por elites que, historicamente, recuam quando a democratização ameaça tocar renda, poder e status.[1] Getúlio Vargas, João Goulart e Luiz Inácio Lula da Silva (e, por extensão, Dilma Rousseff) representam momentos distintos de uma mesma fratura: quando o avanço social tensiona os limites do pacto oligárquico, o sistema reage e derruba.


Em 24 de agosto de 1954, o suicídio de Getúlio Vargas não foi apenas um desfecho dramático, marcou o colapso de um ciclo de nacional-desenvolvimentismo com inclusão social. No segundo governo, Vargas combinava industrialização baseada em empresas estatais, nacionalismo econômico, ampliação de direitos trabalhistas e um Estado que assumia papel estratégico na modernização tardia do país.[2]


A crise política já vinha em ebulição, mas o atentado da Rua Tonelero, em 5 de agosto de 1954, foi o ponto de ruptura. Uma tentativa de assassinato contra o principal opositor de Vargas, Carlos Lacerda, que resultou na morte do major-aviador Rubens Florentino Vaz.[3] Investigações indicaram envolvimento da guarda pessoal do presidente, e o episódio acirrou a ofensiva de setores militares, civis e midiáticos que exigiam sua renúncia.


A campanha moralista do chamado “mar de lama”, capitaneada por Lacerda e pela UDN, não era apenas combate à corrupção: abria espaço para a primeira grande ensaio de moralismo seletivo anticorrupção dirigido contra um projeto de Estado forte e nacionalista.[4] A carta-testamento de Vargas — “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo” — transformou a tragédia em denúncia. O projeto sobreviveu em parte com Juscelino Kubitschek, mas o padrão do veto estava inaugurado. Elites econômicas, parte dos militares e a grande imprensa haviam aprendido que podiam atuar de forma coordenada para desmontar um ciclo de desenvolvimento com conteúdo social.


Dez anos depois, o padrão reaparece, agora em versão mais ampla e brutal. O governo de João Goulart colocou na agenda as reformas agrária, tributária, urbana, bancária e universitária, chamadas de Reformas de Base, como tentativa de realizar, em chave democrática, aquilo que a nossa revolução burguesa havia deixado para trás.[5] Não era apenas política econômica! Tratava-se de redistribuir terra, crédito, direitos e voz política.


O Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, foi o ápice público desse programa. Diante de uma multidão estimada em centenas de milhares de pessoas, Goulart defendeu as reformas, assinou decreto declarando sujeitas à desapropriação as propriedades rurais consideradas improdutivas às margens de rodovias e ferrovias federais e anunciou a tomada, pelo Estado, de refinarias particulares em favor da Petrobrás.[6]


A reação foi imediata. Institutos privados como o IPES e o IBAD organizaram uma vasta máquina de propaganda anticomunista, financiaram campanhas eleitorais, produziram filmes, cartilhas, cursos e articularam-se com setores da hierarquia católica, da alta classe média urbana e dos militares.[7] Em paralelo, os Estados Unidos desenhavam a Operação Brother Sam, com navios, combustível e eventual apoio bélico para o caso de resistência ao golpe.[8] O golpe de 1964 foi um golpe civil-militar, com forte participação de empresários organizados, parte expressiva da mídia, setores das Forças Armadas e apoio do governo norte-americano. E isso é confirmado pela literatura especializada.[9]


As Reformas de Base tocavam exatamente o nervo exposto da elite brasileira, a democratização material da vida. Reforma agrária em um país de latifúndio; sindicalismo forte em economia concentrada; educação pública ampliada; voto para analfabetos e praças; fortalecimento do controle nacional sobre recursos estratégicos. O golpe de 31 de março de 1964 interrompeu não apenas um mandato presidencial, mas uma rara possibilidade de reforma social profunda dentro da legalidade democrática.


Mais de meio século separa o golpe de 1964 da ofensiva que levou ao impeachment de Dilma Rousseff e à prisão de Lula, mas uma linha de continuidade é reconhecível. Se em 1954 o instrumento central foi a grande imprensa, e em 1964 os tanques, entre 2005 e 2018 o mecanismo se sofisticou. Desta vez entraram em ação o Judiciário, a mídia hegemônica, as redes sociais, as big techs, os algoritmos, as fake news e as milícias digitais.


Durante os governos Lula e Dilma, o país viveu um processo inédito de inclusão social. Políticas de transferência de renda como o Bolsa Família contribuíram para retirar cerca de 36 milhões de pessoas da extrema pobreza,[10] o salário mínimo acumulou ganho real de aproximadamente 70%–77% entre 2003 e 2015,[11] houve expansão do acesso ao ensino superior via ProUni, Reuni e interiorização das universidades federais,[12] e o Estado voltou a investir de forma ativa por meio do PAC e do BNDES. Some-se a isso políticas de ação afirmativa, com cotas raciais e sociais nas universidades públicas.


É precisamente esse ciclo que uma parte significativa da literatura crítica identifica como alvo de um novo tipo de veto. Agora, não mais o golpe clássico, mas aquilo que se passou a chamar de lawfare, o uso estratégico do aparato jurídico para fins de perseguição política.[13] A Operação Lava Jato, iniciada em 2014, combinou investigações legítimas de corrupção com práticas duramente questionadas, como vazamentos seletivos à imprensa, conduções coercitivas espetaculares, prisões preventivas prolongadas como forma de pressão, acordos de delação premiada negociados em ambiente de forte assimetria entre acusação e defesa.[14]


No caso de Lula, o processo é conhecido. No dia 4 de março de 2016, o ex-presidente foi alvo de condução coercitiva para depor,[15] em 7 de abril de 2018 foi preso em Curitiba, onde permaneceu por 580 dias,[16] e teve sua candidatura impedida nas eleições presidenciais de 2018, apesar de liderar as pesquisas de intenção de voto. Em 2019, as reportagens do The Intercept Brasil tornaram públicas conversas privadas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato, revelando coordenação imprópria entre acusação e magistrado.[17]


Em 2021, o ministro Edson Fachin, do STF, anulou as condenações de Lula na Lava Jato por incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba,[18] e, no mesmo ano, a Segunda Turma do STF reconheceu a parcialidade de Sergio Moro na condução do caso do triplex.[19] Em termos jurídicos, tratou-se de uma desconstituição profunda do edifício processual que havia levado à prisão do ex-presidente. Em termos políticos, muitos autores situam esse processo como exemplo de lawfare aplicado a um líder de um projeto de desenvolvimento com inclusão social.[20]


O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, por “pedaladas fiscais”, prática contábil utilizada por governos anteriores sem consequências similares, é percebido por uma vasta literatura crítica como golpe parlamentar ou ruptura institucional de baixa intensidade, ainda que haja vozes que o descrevam como estritamente legal.[21] O fato é que, combinados, o impeachment, a prisão (depois anulada) de Lula e a ascensão do bolsonarismo, alimentado por campanhas massivas de desinformação nas redes, desmontaram o ciclo de políticas que buscava articular mercado interno, direitos sociais e soberania nacional.


O fio que liga 1954, 1964 e 2016–2018 não é de repetição mecânica, mas de estrutura. Em 1954, Vargas enfrentou uma coalizão de imprensa conservadora, setores militares e interesses contrariados pelo projeto nacionalista da Petrobrás.[22] Em 1964, Jango foi derrubado por uma articulação entre empresários organizados no complexo IPES/IBAD, militares formados na doutrina de segurança nacional, parte da elite urbana e o apoio logístico e político dos Estados Unidos.[23] No ciclo 2016–2018, Dilma e Lula foram alvo de uma combinação de mídia hegemônica, setores do Judiciário e do Ministério Público, big techs e um Congresso conservador, que, apoiados por uma nova direita digitalizada, operaram impeachment, processos judiciais e uma máquina de desinformação em escala inédita.


Em todos esses momentos, o conteúdo do veto é semelhante: bloqueio da democratização social. O que muda é a forma, de acordo com o estágio do capitalismo:


  • Na era do Brasil agrário-exportador, antigos grupos rurais e frações da burguesia industrial nascente defendem uma modernização estritamente controlada.

  • No pós-guerra, elites industriais associadas ao capital estrangeiro se articulam com o aparato militar e com a Guerra Fria.

  • No século XXI, a aliança se reconfigura como combinação de elites financeirizadas, agronegócio exportador e conglomerados midiáticos e digitais, em sintonia com um capitalismo de plataforma e financeirização global.


A democracia brasileira não sofre apenas de instabilidade conjuntural. Sofre de interdição estrutural. O limite, aqui, não é o ato de votar, mas a possibilidade de o voto se traduzir em redistribuição de poder, renda e reconhecimento. A cada avanço social mais denso, responde-se com moralismos seletivos, pânicos morais, campanhas de desinformação e instrumentalização de procedimentos institucionais.


O país chegou tarde ao capitalismo industrial e chega, mais uma vez atrasado, ao capitalismo digital e financeirizado. Sem base industrial diversificada, sem reforma tributária progressiva, sem reforma agrária efetiva e sem soberania informacional, o Brasil vive a pior combinação possível, um caso de privilégio econômico oligárquico associado ao ecossistema digital desagregador e anti-intelectual.[24]


A tradição golpista não desapareceu; apenas se sofisticou. O que antes exigia tanques, hoje pode se dar por meio de decisões judiciais controversas, guerras de narrativa e máquinas de desinformação algorítmica. O que antes dependia de censura explícita, hoje opera com invisibilização, sobrecarga informacional e assassinato de reputações. A essência, no entanto, permanece. As elites raramente aceitam que a democratização material do país avance para além de limites estritamente tolerados.


Não faltam eleições; falta revolução democrática no sentido mais profundo, aquele que desmonta a engenharia histórica que impede que a soberania popular se converta em transformação social substantiva. A democracia brasileira não “morreu”: ela segue impedida de nascer plenamente.


A pergunta, portanto, não é retórica. Ela nos acompanha desde Vargas, atravessa Goulart, explode na crise do lulismo e permanece em aberto:


Quantas vezes mais aceitaremos que projetos de desenvolvimento popular sejam interrompidos em nome de uma moralidade seletiva e de um medo persistente da cidadania real?

Sem enfrentar esse padrão de veto, sem olhar para ele de frente, com rigor histórico e coragem política, corremos o risco de repetir, com novas datas e tecnologias, as velhas cenas de 1954, 1964 e 2016. E de perpetuar o nosso agonizante meio-termo: uma modernização sem povo, uma república sem República, uma democracia permanentemente sitiada.


Notas e referências

(1) FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo / Contracorrente, várias edições.


(2) Sobre o segundo governo Vargas, nacional-desenvolvimentismo e criação da Petrobrás, ver: FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. (cap. final). E análise sintética em: FIDELIS, Thiago. “Ato final: os últimos momentos do governo Vargas (1954)” em Cordis, n. 18, 2017.


(3) “Atentado da Rua Toneleros – Atlas Histórico do Brasil”, FGV.


(4) Sobre a campanha do “mar de lama” e o papel da imprensa na crise de 1954, ver novamente FIDELIS (2017) e verbetes em Brasil Escola/FGV.


(5) Para um panorama das Reformas de Base, ver: SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia (cap. sobre Jango); e sínteses em Brasil Escola sobre o golpe de 1964.


(6) “Comício das Reformas (Central do Brasil, 13 de março de 1964)”, Atlas FGV; e reportagens de época (O Globo).


(7) DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981. (análise clássica do complexo IPES/IBAD).


(8) FICO, Carlos. O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


(9) Para sínteses recentes sobre o caráter civil-militar do golpe de 1964 e o papel dos EUA, ver: AREND, Silvia M. F. “Mais do que algozes e vítimas. A perspectiva de Carlos Fico”. Revista Tempo, 2010; e material da Biblioteca Nacional sobre o golpe de 1964.


(10) “Em 12 anos, Bolsa Família retirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema”, Casa Civil, 2015; e relatórios do MDS sobre o Bolsa Família e Brasil Sem Miséria.


(11) “País comemora aumento real de 76% do salário mínimo na última década”, Casa Civil (Governo Federal, 2015); e notas técnicas do DIEESE sobre a evolução do salário mínimo entre 2003 e 2016.


(12) Sobre expansão da educação superior (ProUni, Reuni, universidades federais), ver: CHAVES, Vera Lúcia Jacob. “A política de expansão da educação superior no Brasil (2003–2014)”. Educação & Sociedade, 2016; e balanços do MEC para o período 2003–2014.


(13) MARTINS, Cristiano Zanin; ZANIN, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Contracorrente, 2019.


(14) Para uma visão crítica das práticas da Lava Jato, ver o dossiê “As mensagens secretas da Lava Jato”, The Intercept Brasil (a partir de 2019).


(15) “Lula presta depoimento após condução coercitiva”, Agência Brasil / Senado, 4 mar. 2016.


(16) “Prisão de Luiz Inácio Lula da Silva”, verbete atualizado; e cobertura de sua soltura em novembro de 2019 (VEJA, CNN Brasil).


(17) “Chats privados revelam colaboração proibida de Sergio Moro com Deltan Dallagnol na Lava Jato”, The Intercept Brasil, 9 jun. 2019; e demais reportagens da série Vaza Jato.


(18) STF – Decisão do ministro Edson Fachin (HC 193.726), 8 mar. 2021, anulando condenações de Lula por incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba. STF.


(19) STF – 2ª Turma reconhece parcialidade de Sergio Moro no caso do triplex (HC 164.493), decisão de março

de 2021, depois confirmada pelo Plenário. Migalhas.


(20) Para leituras que articulam Lava Jato, elites brasileiras e padrão histórico de bloqueio à democratização, ver: SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya / Estação Brasil, 2017–2019.


(21) Há extensa bibliografia sobre o impeachment de 2016; para uma síntese crítica, ver: SINGER, André. O lulismo em crise; e dossiês organizados por associações de cientistas políticos.


(22) Sobre o papel da imprensa e das elites na crise de 1954, ver novamente FIDELIS (2017); e verbetes do Atlas Histórico FGV sobre o atentado da Rua Tonelero.


(23) DREIFUSS (1981) e FICO (2008) são referências centrais para a compreensão do caráter civil-militar do golpe de 1964 e da articulação entre IPES/IBAD, militares e governo norte-americano.


(24) Para discussão mais ampla sobre elites, modernização e atraso, ver: SOUZA, Jessé. A elite do atraso; FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil; e interpretações recentes da tradição autoritária brasileira na historiografia de Carlos Fico e outros.

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