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Do apagão ao colapso: notas sobre a falência de uma era

  • Foto do escritor: Rogério Baptistini Mendes
    Rogério Baptistini Mendes
  • há 2 dias
  • 3 min de leitura

O apagão que atingiu São Paulo nos últimos dias não é um acidente climático nem um simples problema de gestão. Ele revela a falência de um modelo que transformou serviços essenciais em ativos financeiros e submeteu a vida urbana à lógica do lucro de curto prazo

Yanis Varoufakis
Yanis Varoufakis

São Paulo vive uma espécie de apagão permanente. Ventos relativamente previsíveis causam quedas prolongadas no fornecimento de energia; bairros inteiros ficam dias sem luz; a rotina urbana entra em colapso. A empresa concessionária, a ENEL, tem se mostrado incapaz de responder com rapidez e eficiência. A imprensa noticia, a população sofre e o poder público parece resignado.


Não se trata de um episódio isolado. Trata-se de um problema estrutural, cuja origem não está no vento, mas na privatização de um serviço estratégico, entregue a uma racionalidade que não reconhece a energia elétrica como direito, mas como ativo financeiro.


A privatização transferiu patrimônio público e infraestrutura vital para agentes privados que operam segundo a lógica dominante do capitalismo contemporâneo: o enxugamento permanente de custos, a redução de quadros técnicos, a postergação de investimentos e o foco obsessivo na valorização das ações. O resultado é conhecido. Quando tudo funciona, os lucros são apropriados; quando o sistema entra em colapso, o prejuízo é socializado.


O discurso que sustentou essas privatizações prometia eficiência, modernização e qualidade. O que se observa, no entanto, é a degradação progressiva dos serviços e a incapacidade de resposta diante de eventos cada vez mais frequentes num contexto de mudanças climáticas. O apagão não é exceção: é regra.


Esse movimento não é novo. A direita brasileira, desde os anos 1990, rendeu-se integralmente à onda neoliberal inaugurada por Thatcher e Reagan, abandonando qualquer projeto nacional de desenvolvimento. Em nome da eficiência dos mercados, desmontou-se o Estado enquanto instância de planejamento, coordenação e indução do investimento produtivo. O desenvolvimento foi substituído pela gestão tecnocrática da escassez.


Nos últimos anos, essa opção se expressou de forma particularmente perversa na obsessão com a meta de inflação, tratada como dogma intocável, mesmo à custa da asfixia da economia real. A manutenção de juros reais elevados transformou-se num mecanismo permanente de transferência de renda da sociedade e da produção para o sistema financeiro. Enquanto a indústria perde densidade, o investimento produtivo recua e o crédito encarece, a banca prospera.


A financeirização não é um efeito colateral do sistema: tornou-se seu núcleo. E é aqui que as elaborações de Yanis Varoufakis, especialmente em Tecnofeudalismo, ajudam a compreender o que está em curso. O capitalismo baseado em mercados, concorrência, lucros produtivos e preços como sinais já não existe em sua forma clássica. O que emerge é outra coisa.


Plataformas digitais, conglomerados financeiros e empresas que controlam infraestruturas essenciais operam como senhores de feudos, extraindo rendas por meio do controle de acessos, dados e dependências. Os mercados são progressivamente substituídos por sistemas fechados de extração. O lucro dá lugar ao pedágio. A concorrência cede espaço à dominação.


Nesse processo, o capitalismo mata seus próprios fundamentos. Ao destruir os mercados, elimina o princípio que lhe conferia legitimidade histórica. E, ao fazê-lo, corrói também a liberdade econômica e a democracia política. Onde infraestruturas vitais são controladas por monopólios privados globais, a soberania popular torna-se uma abstração.


É nesse ponto que o apagão elétrico encontra a água turva que começa a sair das torneiras paulistas. A privatização da SABESP segue o mesmo roteiro. Relatos de perda de qualidade do serviço, demissões e denúncias de que ações teriam sido repassadas ao gestor privado abaixo do valor de mercado não são desvios: são expressões típicas da financeirização dos bens comuns. Água, assim como energia, deixa de ser condição da vida e passa a ser linha em balanço financeiro.


Esse processo tem direção política clara. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, quadro político oriundo do bolsonarismo e defensor radical das privatizações, é hoje apresentado pelo mercado financeiro como pré-candidato à Presidência da República. Seu horizonte declarado é a replicação, no Brasil, do experimento argentino de Javier Milei: um projeto quase anarco-capitalista, no qual o Estado é tratado como inimigo e não como instrumento de organização social.


O resultado desse caminho já é visível. Apagões, serviços degradados, precarização do trabalho, captura do patrimônio público e erosão da democracia. O que se vende como modernização revela-se regressão histórica.


O apagão em São Paulo, portanto, não é apenas elétrico. Ele é sintoma de um esgotamento civilizatório. Do fim da era de ouro do capitalismo de bem-estar à ascensão do neoliberalismo; da financeirização à feudalização dos mercados; da privatização da energia à mercantilização da água. Tudo pertence a um mesmo movimento histórico.


E o desfecho se impõe com ironia quase biológica:


O capital, livre de controle e regulação, comporta-se como um vírus: uma vez liberto, só é detido quando mata o organismo que o hospeda — o próprio capitalismo.


O problema já não é apenas econômico. É político, social e, em última instância, civilizatório.

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