O horror do nosso tempo de horrores são as vidas sacrificadas inutilmente. Sob justificativas diversas a tragédia da desumanização e do extermínio se repete. Ser despossuído em qualquer parte do mundo é ser um número, estar sob a lógica da razão instrumental que orienta o burocrata a serviço dos donos do dinheiro e do poder. É ser um refugo.
Primo Levi
Em janeiro de 1945, o Exército Vermelho da extinta União Soviética liberou Auschwitz, o maior campo de concentração e extermínio mantido pela Alemanha nazista. Antes, em julho de 1944, próximo à cidade de Lublin, na Polônia, havia liberado outro campo de grande porte, o de Majdanek. Mesmo com a tentativa alemã de ocultar os crimes que eram cometidos nas instalações, os soviéticos encontraram milhares de prisioneiros ainda vivos, centenas de milhares de ternos masculinos, cerca de 800.000 vestidos e mais de 7.000 quilos de cabelos. A grande loucura do Terceiro Reich foi, finalmente, mostrada ao mundo!
Auschwitz foi um complexo de campos de concentração, o maior do regime nazista. Ficava a 50 quilômetros de Cracóvia, na Polônia. Nele, funcionava uma indústria de extermínio em massa, administrada como uma empresa moderna. Ao lado dos três campos principais, o campo de extermínio central incluía campos auxiliares e subcampos. Todos eram subordinados, desde março de 1942 até a liberação, à Central Econômica-Administrativa das SS. Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas tenham morrido em suas dependências.
Ao chegar em Auschwitz, os prisioneiros eram despidos do que lhes restava de humanidade. Perdiam o seu nome e tinham a sua pele tatuada com um número. O prisioneiro número 174.517 fez chegar até nós a sua experiência de não-homem como ocupado em funções do Comando 98, o Comando de Química, submetido a um nazista ascético, alto, magro e louro: o Doutor Pannwitz. O seu nome é Primo Levi, italiano, nascido em Turim. O fato de falar alemão e ser químico o tornaram útil, funcional. A razão instrumental que movia a máquina alemã pode ser compreendida nesta passagem do relato sobre o que ele imaginou pensar o sujeito que o avaliava:
“Esse algo que está na minha frente pertence a um gênero que, obviamente, convém eliminar. Neste caso específico, deve-se, antes, examinar se ele não contém ainda algum elemento aproveitável”. (LEVI,1988. P. 156)
O não reconhecimento da humanidade em outro ser humano não é uma novidade. O antropólogo Claude Lévi-Strauss argumenta que não é congenial à espécie a noção de humanidade que abrange a todos, sem distinção de raça ou civilização. Esta, surgiu muito tardiamente e ainda hoje encontra dificuldade para a plena difusão (LÉVI-STRAUSS, 1993). O sempre difamado Karl Marx, em O Capital, aponta para a visão peculiar dos acumuladores de riqueza. A racionalidade da administração e dos negócios não considera o trabalhador como alguém feito de carne e sangue, com dores e sonhos, mas apenas um dia de trabalho a explorar:
“’O que é um dia de trabalho?’ [...] A estas perguntas, já se viu, responde o capital: o dia de trabalho conta diariamente 24 horas completas, com dedução das poucas horas de descanso sem as quais a força de trabalho recusa absolutamente a renovação do seu serviço. É desde logo evidente que o operário, ao longo de todos os seus dias de vida, nada é senão força de trabalho; que, por isso, todo o seu tempo disponível é, por natureza e direito, tempo de trabalho e pertence, portanto, à autovalorização do capital.” (MARX, 1982)
O horror do nosso tempo de horrores são as vidas sacrificadas inutilmente. Sob justificativas diversas a tragédia da desumanização e do extermínio se repete. Os campos de concentração estão em toda a parte e não contam com a esperança de ser liberados pelo Exército Vermelho. Ser despossuído em qualquer parte do mundo é ser um número, estar sob a lógica da razão instrumental que orienta o burocrata a serviço dos donos do dinheiro e do poder. É ser um refugo.
“A ‘população excedente’ é mais uma variedade de refugo humano. Ao contrário dos homini sacri, das ‘vidas indignas de serem vividas’, das vítimas dos projetos de construção da ordem, seus membros não são ‘alvos legítimos’ excluídos da proteção da lei por ordem do soberano. São, em vez disso, ‘baixas colaterais’, não intencionais e não planejadas, do progresso econômico [...]. Nesse processo, alguns componentes são danificados a tal ponto que não podem ser consertados, enquanto, dos que sobrevivem à fase de desmonte, somente uma quantidade reduzida é necessária para compor os novos mecanismos de trabalho, em geral mais dinâmicos e menos robustos”. (BAUMAN, 2005. P. 53.)
O desenvolvimento de novas técnicas de produção e de gestão transformam trabalhadores em supérfluos. A precária proteção social e a flexibilização das contratações empobrecem os empregados. A desregulamentação dos mercados torna a vida insustentável para os pobres. Mas, para além das obviedades empiricamente demonstradas, os operadores da Nova Central Econômica-Administrativa, que agora responde pela alcunha “mercado”, afirmam que sua obra é para mil anos[1]. Basta cortar agressivamente impostos das faixas mais altas de renda e dar liberdade para os ricos investirem, ao tempo em que se retiram as garantias e proteções dos pobres. Assim, os primeiros criam riqueza; os segundos trabalham mais. O crescimento será garantido, produzirá novas oportunidades e todos ganharão ao final, apesar das baixas.
NOTA:
[1] O Terceiro Reich tem início com a ascensão de Hitler ao poder como chanceler, em 30 de janeiro de 1933. A propaganda nazista difundia a crença de que seria um regime que duraria mil anos.
BIBLIOGRAFIA:
Claude Lévi Strauss. Antropologia estrutural dois. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Editora: Tempo Brasileiro, 1993.
Karl Marx. O Capital: crítica da economia política. Lisboa-Moscovo: Editorial Avante! - Edições Progresso, 1982. In: < https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap08/05.htm > Acesso em 03 de janeiro de 2024.
Primo Levi. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
Zigmunt Bauman. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
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