No capitalismo, com a sua lógica baseada na acumulação pela acumulação, não há possibilidade de conter a maré crescente de desviantes e o estado de anomia quase que perpétuo das sociedades.
Robert Merton
Em 1987, a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher afirmou inexistir a sociedade[1]. A ideia, forjada numa visão atomista da realidade social e em preconceitos contratualistas, ajuda a compreender a obsessão de certos próceres da extrema direita com a responsabilização dos indivíduos pela condição em que vivem. A pobreza, a doença e o fracasso social e econômico seriam devidos às escolhas erradas, ao comportamento imprudente e corrompido. Enfim, os desviantes que paguem pelos seus atos!
Devemos ao sociólogo francês Émile Durkheim a superação das abstrações metafísicas e dos delírios morais dos acumuladores de dinheiro. Sua obra mostra o desvio como social, explicado a partir dos problemas de integração dos indivíduos à sociedade. Quando, por exemplo, a mudança social ganha aceleração, as normas e as regras vigentes perdem a eficácia e a integração na divisão do trabalho social falha, surge um estado de anomia[2]. Esse é um fenômeno universal e claramente social. O desemprego estrutural gerado pela mudança do padrão tecnológico dá um exemplo, com seus batalhões de errantes pelas ruas.
O sociólogo norte-americano Robert Merton (1968) lembra que as sociedades oferecem aos seus membros metas culturais legítimas, algo como orientações sobre como viver. O modelo de família, de sucesso pessoal e profissional, por exemplo, são produtos sociais. Entretanto, não estão acessíveis a todos. Há barreiras para acessar essas fantasias e isso gera tensões. É o que explica os comportamentos desviantes, que nada mais são do que respostas às situações geradas socialmente.
No capitalismo, com a sua lógica baseada na acumulação pela acumulação, não há possibilidade de conter a maré crescente de desviantes e o estado de anomia quase que perpétuo das sociedades. Aos poderosos não resta alternativa senão criminalizar as vítimas, qualificando o seu comportamento e existência como patológicos. Rebeldia, cor da pele, condição social e econômica, gênero, classe, local de moradia são rótulos que passam a definir as ações e as consequências. A identidade é a marca que define o culpado. Preto de motocicleta é vagabundo; branco em automóvel esportivo é empresário.
Esse processo de identificação e rotulação produz os criminosos. É ele que faz a festa do noticiário com que a mídia sensacionalista preenche o tempo dos homens e mulheres médios que, de acordo com Margareth Tatcher, não são determinados socialmente. Essas pessoas ganham uma nova atribuição com a vitória da mística do individualismo neoliberal: a responsabilidade política de administrar a conduta das demais. Governar pela vigilância, pela difamação, pelo terror. São a polícia do comportamento.
Os grupos de extrema direita que cresceram misturando pregação moral e política exprimem o espírito da visão neoliberal de mundo. A morte do social e triunfo do indivíduo, em nível discursivo, se conjugam na produção de uma identidade envergonhada de ser humana. Seus portadores agem como autômatos na imposição do que julgam ser as normas do bem viver, incapazes de pensar por si mesmos. Odeiam e só sabem odiar tudo o que é diverso. Daí a sua intolerância.
Um caso simbólico, paradigmático, é o da perseguição movida ao pedagogo e sacerdote católico Júlio Lancellotti, da igreja de São Miguel Arcanjo. Ele, do alto de sua humildade, desafia os estabelecidos e a autoidentidade normal que lhes serve de referência. Afinal, ir ao encontro dos desviantes e tratá-los como como gente, sem lhes imputar o crime da pobreza e do fracasso, é um pecado grave contra as noções sagradas que orientam a vida.
Os desgraçados assistidos pela missão do padre Júlio, na mentalidade atormentada dos membros da extrema direita neoliberal, não atendem às expectativas de comportamento consideradas válidas e, por este motivo, são inúteis. Com suas atitudes negativas, eles seriam os únicos responsáveis pela condição que enfrentam. Ajudá-los premiaria o não merecimento e serviria de incentivo para outros.
Eis o fascismo em ação! Criaturas oprimidas com a sensação de autoridade sobre os mais fracos, vivendo satisfeitas num mundo sem coração.
NOTAS:
[1] A frase da dama neoliberal é: “A sociedade não existe. Existem homens, existem mulheres e existem famílias”.
[2] Ausência de lei ou regra.
BIBLIOGRAFIA:
MERTON, R.. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968.
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